Por Doutor Rodrigo
Mezzomo*
Semana passada o magistrado da 4.ª Vara Federal Criminal do
Rio de Janeiro acolheu denúncia da promotoria em face de cinco militares, todos
reformados, acusados da morte do ex-deputado federal Rubens Paiva, durante o
período militar. O desaparecimento de Paiva ocorreu em 1971, nas dependências
do DOI (Destacamento de Operações de Informações), no bairro da Tijuca, na zona
norte do Rio.
Em síntese, a denúncia se deu ao argumento de que a Lei de
Anistia não estabeleceu perdão para condutas previstas no Código Penal. A Lei,
neste caso, deveria ser interpretada “restritivamente“, principalmente quando
“colide com a proteção de direitos fundamentais“. Segundo o juiz federal, os
crimes são “contra a humanidade“. “Em relação aos fatos narrados na denúncia,
não há o que se falar em extinção de punibilidade pela anistia“.
Ao admitir a ação
criminal, entendeu o julgador pela inocorrência de prescrição do crime, apesar
de passados mais de 43 anos. Lembra o magistrado que “Já incidia o princípio
geral do direito internacional, acolhido como costume pela prática dos Estados
e posteriormente por resoluções da ONU, de que os crimes contra a humanidade
são imprescritíveis“.
Enquanto esse tipo de comportamento “revisionista” se atinha
às tais inúmeras “Comissões da Verdade” e suas burlescas distorções históricas,
o mal ainda era suportável. Entretanto, agora essa retífica do passado, ou
seja, essa contrafação dos acontecimentos chega aos Tribunais, o que
potencializa de modo geométrico o perigo.
Ao se revisitar o ocorrido de modo enviesado, com nítida
intenção de se emendar eventos históricos, arriscada reavaliação interpretativa
do sistema jurídico pode emergir. Nessa reformulação do ontem, podem os
Tribunais sucumbir à ideologia. Se assim o fizerem, ou seja, se agirem como
ortopedistas do passado, causarão mais mal que benefícios, mais injustiças que
reparos. O ativismo judicial é prática crescente, porém, censurável.
Sob o manto de um discurso carregado de emoção (o que não
combina com a técnica jurídica), a aceitação da Ação Penal pode trazer imensa,
inesperada e negativa repercussão no que tange à segurança jurídica. Assim
sendo, me parece que, agora, a questão não pode mais ser ignorada pelos que
realmente defendem a liberdade.
As tais Comissões a que me referi há pouco, se transformaram
em mecanismos de promoção pessoal e estão sendo instaladas em todos os âmbitos.
Em breve, acredito, até no condomínio onde resido, no restaurante que frequento
ou no jardim da infância da esquina serão instaladas comissões desta natureza.
Elas estão por toda parte, revolvendo a história ao fluxo das ideologias,
reescrevendo-a conforme melhor parece aos integrantes de tais Comissões, muitos
dos quais, coincidentemente, são candidatos nas eleições que se avizinham.
Se investigam apenas os agentes do Estado, todavia, nada
quanto aos crimes brutais cometidos pela esquerda, silêncio sepulcral em
relação ao terrorismo das diversas organizações de guerrilheira (Ação
Libertadora Nacional, Ação Popular, Comando de Libertação Nacional, PCdoB,
POLOP, VAR-Palmares, Vanguarda Popular Revolucionária e tantas outras).
O que é deletério nesses simulacros é transmutação de
terroristas em heróis, ou seja, a versão burlesca de que tais indivíduos
estavam lutando por democracia e liberdade. Trata-se de alquimia historicista!
Em verdade, todas as organizações que partiram para a luta armada, urbana ou
rural, tinham compromisso expresso com a implantação de uma “ditadura do
proletariado” no Brasil.
A única divergência entre eles era o modelo a ser seguido,
isto é, para alguns a URSS era o paradigma, para outros o modelo era a China ou
Cuba. Mas todos, invariavelmente, queriam implantar uma ditadura comunista no
Brasil; quanto a isso, não há dúvida.
Feita essa inflexão em relação as “Comissões da Verdade”,
voltemos a decisão judicial em comento. Em 28 de agosto de 1979, o presidente
João Figueiredo sancionou a Lei nº 6.683, a qual restou conhecida como “Lei da
Anistia”, vez que instituiu o perdão para os todos que, no período compreendido
entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, haviam cometido crimes
políticos ou conexos, bem como concedeu ampla anistia tiveram seus direitos
políticos suspensos pelos famosos Atos Institucionais.
Os “movimentos sociais” (eufemismo para nos referimos às
organizações esquerdistas) veem reiteradamente defendendo a tese de que a Lei da
Anistia não poderia valer para os torturadores que serviram ao Estado, mas
apenas para os guerrilheiros. Em suma, a anistia se daria apenas em relação a
um os lados do conflito, os esquerdistas, mas não os militares.
Segundo essa pitoresca interpretação, nenhum Estado tem o
poder de anistiar a tortura, pois existem tratados internacionais que versam a
respeito do tema e a reconhecem como crime. Além disso, o Brasil não estaria
divorciado dos parâmetros mínimos de respeito aos chamados direitos humanos. Por
fim, para que se possa construir o futuro precisaríamos ajustar contas com o
passado.
Alega-se que o Brasil deve se adequar aos tratados da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, dos quais é signatário. Neste debate é
comum se dizer, ainda, que o Brasil é o único país que ainda não fez essa
releitura jurídica do período ditatorial, pois vários países da América Latina
revogaram suas Leis de Anistia. Tome-se a Argentina como exemplo.
Os argumentos são todos muito bons, todavia, juridicamente
insustentáveis, sendo resultado apenas de uma crescente mentalidade
esquerdizante que reina soberana em certas áreas da América Latina, região do
mundo hostil à liberdade, à livre iniciativa e ao lucro.
Realmente procede a afirmação de que o Brasil está inserido
em um contexto de tratados internacionais e é necessário respeitá-los. Os
tratados assinados e ratificados pelo Brasil ingressam em nosso ordenamento
jurídico e hão de ser observados e aplicados. Por força desse arcabouço legal é
a tortura imprescritível, assim como o Brasil reconhece a competência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
Todavia, tais argumentos, apesar de corretos, não bastam
para que se autorize uma releitura parcial da Lei da Anistia, apta a anular o
diploma normativo apenas no que se refere aos militares e demais agentes da
repressão. Gostemos ou não, a Lei da
Anistia vale para ambos os lados!
Salvo melhor juízo, o mencionado artigo 1º da Lei de Anistia
conjuga o vocábulo “todos” com as expressões “cometeram crimes políticos ou
conexo com estes” e, portanto, engloba ambos os lados do espectro daqueles
tempos, assim como todas as condutas de natureza política praticadas pelos
envolvidos.
Em outros termos, a lei acolhe os e agentes da repressão em,
em igual medida, os militantes de esquerda que sequestraram, assaltaram ou
cometeram atentados, homicídios, justiçamentos e outras brutalidades. Se
encontram nessa esteira vários militantes do PT, incluindo a presidente da
República, a senhora Dilma Rousseff, além de muitos outros integrantes e ex
integrantes do governo, alguns deles hoje presos não por atentados e ações
guerrilheiras, mas por protagonizarem o mais grave e vergonhoso episódio de
corrupção do país, o Mensalão.
Ressalte-se, ainda, que a Convenção Interamericana de Direitos
Humanos foi adotada apenas em 1985 e entrou em vigor no dia 28 de fevereiro de
1987. Ela define os atos de tortura e os dá como ilegais; também declara quem
pode ser processado enquanto torturador e dispõe claramente que “obedecer
ordens” não será considerado como desculpa justificada para infringir tortura.
A convenção salienta que nenhuma circunstância excepcional,
nem mesmo tempos de guerra ou potencial periculosidade do prisioneiro, pode
justificar o uso da tortura; também apresenta medidas legais disponíveis para
as vítimas. Os Estados, ao assinarem a referida Convenção, concordam em adotar
legislação nacional seguindo as diretrizes traçadas por esse tratado,
transformando qualquer forma de tortura, sob qualquer circunstância, em
ilegalidade. Por fim, adiciona-se o fato de que as partes celebrantes da
Convenção concordam em incluir a tortura dentro da lista de crimes que
concorrem à extradição.
O tratado é ótimo e
aplaudo seus termos! Todavia, sua validade se dá ao futuro – ou seja, de 1987 em
diante – e não para o passado! Não se legisla para detrás, sob pena de se ferir
de morte pilares do Direito. Em outras palavras, o direito moderno, que se
consagrou com as revoluções Americana e Francesa, iluminista portanto, consagra
a anterioridade da lei como sustentáculo da segurança jurídica. A lei não pode
retroagir, atingindo condutas passadas, não volta no tempo para punir atos em
priscas eras.
Impossível não reconhecer que o tipo penal da “tortura”
disposto no Tratado Interamericano é datado de 1987 e, cronologicamente,
posterior à anistia concedida em 1979, ano de edição da Lei do Perdão.
Por conseguinte, mesmo que anulada a Lei de Anistia apenas
para os militares (o que seria exótico), o ordenamento jurídico pátrio não
admite que a tipificação do crime de tortura seja aplicável à ações
antecedentes à sua própria instituição. O problema é de conflito da lei penal
no tempo.
Por mais nobre que seja a intenção de julgar os
torturadores, por mais que sejam moralmente reprováveis as condutas e por mais
dolorido que seja o sentimento de impunidade diante da liberdades dos mesmos,
neste caso, é forçoso reconhecer que não há base jurídica para puni-los.
Por fim, a discussão continua a ser juridicamente
infrutífera caso a Lei de Anistia seja considerada inaplicável em relação às
condutas previstas no Código Penal Brasileiro, como quer o juiz da 4.ª Vara
Federal Criminal, do Rio de Janeiro. A razão é uma só: por mais peculiar que
seja a matriz hermenêutica escolhida, os anos se passaram a prescrição
consumou-se. Não há matemática criativa que de conta disso.
Acredito que mais vale pensarmos na construção do futuro
desta Nação, que despendermos valiosa energia revolvendo o passado. Triste do
país que não tem memória (e o Brasil padece de gravíssima amnésia), não
obstante, esse acerto de contas cabe aos historiadores, não mais ao judiciário!
Esse é um típico caso em que a moral está em descompasso com o direito
positivado e, para a segurança jurídica de todos, é bom que assim o seja.
Por derradeiro, fica a pergunta: a prosperar a tese
esposada, qual seja, a inaplicabilidade de anistia aos agentes do Estado, como
a Corte interamericana deverá tratar os irmãos Castro e demais membros da
longeva e sanguinária ditadura cubana?
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*Rodrigo Mezzomo é Advogado
(UFRJ), com pós-graduação em filosofia contemporânea pela PUC-RJ, Mestre em
Direito (Mackenzie-SP) e Doutorando em Direito pela Universidade de Buenos
Aires. Professor de Direito Processual Civil (Mackenzie-RJ).