Por Nivaldo Cordeiro
Adorei o filme Robocop dirigido por José Padilha. De
qualquer ângulo que se olhe é um bom filme, exceto por um grave erro no
argumento, sobre o qual já falarei. O remake só não é uma obra prima porque
escapou da discussão de fundo sobre a Justiça e seu aparato repressivo. Essa
discussão levaria à própria discussão da natureza da lei, sua legitimidade, sua
extensão, sua fonte.
Ambientado num tempo futurista, de ficção científica, o
Robocop do Padilha faz uma viagem sobre os futuros instrumentos bélicos
autômatos, tempo no qual soldados seriam substituídos por máquinas controladas
remotamente. De fato, já temos algo assim com os drones. Mas o argumento do
filme se funda na recusa do Senado de aprovar o uso policial dessas máquinas,
porque as mesmas não sentiriam “emoções”. Aqui está a falha clamorosa.
A questão principal não é saber se máquinas têm, ou não,
emoções, mas é saber qual a fonte da lei e da Justiça e qual o raio de ação do
Estado para aplica-las. O filme atual, como o anterior, faz do policial meio
homem, meio máquina, um instrumento de aplicação instantânea da lei e da
Justiça. É como se fosse um Ranger do Far West, duelando contra os criminosos
armados. A maior falha do argumento é essa, a de que essa coisa robótica é
quase indestrutível e tem força descomunal, sendo necessária bala calibre .50
para destruí-la. Se assim é, um criminoso armado com armas comuns não seria
ameaça ao Cyborg. Mas ele age como se ele fosse um homem comum. E mata, quando
facilmente poderia dominar e algemar o criminoso valente. Grave erro de
argumento.
Robocop é a lei e o tribunal e o verdugo quando encontra
diante de si resistência armada.
A discussão em torno da “automação” plena do Robocop por lhe
eliminar as memórias emocionais se insere
dentro desse contexto. O roteirista mostrou que o elemento humano é
forte e a memória afetiva é recuperada, apesar de tudo. Mas esse não é o ponto
essencial, o essencial é saber se a lei defendida pelo Robocop é justa. A
questão da lei é mais complicada. O que está em jogo é a suposta sacralidade da
lei estatal, que cabe cumprir a qualquer preço sob pena de se pagar com a vida.
Um mundo povoado de máquinas vingadoras como o Robocop está no horizonte. Seria
a ditadura policial perfeita, total, da qual ninguém escaparia. E quem faria a
lei? Um Senado? Um Congresso? Um ditador? Quem garante que a lei é justa e
legítima? As armas do Robocop?
Se a fonte da lei é um colegiado ou um homem não é a questão
principal. A questão é: a lei estatal não pode ser questionada e mesmo
descumprida? O cristianismo prescreve a confissão, o perdão e a pena expiatória
para os transgressores da lei de Deus. Já a lei abstrata estatal é inflexível e
inexorável e não cogita de perdão algum. Nosso mundo já está assim, o Leviatã e
suas leis pairam acima da moral e da consideração individual, tornaram-se uma
coisa monstruosa, acima da condição humana. O Estado moderno escravizou os
homens e os mantem sob o contínuo terror de sua Justiça, suas polícias e suas
Forças Armadas. A liberdade é ficção.
Para piorar, os homens-massa pedem sempre mais Estado a cada
fato novo que acontece. O limite da ditadura policial não existe para as massas
vingadoras, incapazes de perdoar. Assim, o Estado moderno encarna o poderoso
Baal, que se compraz em aprisionar e matar homens, mesmo que e também porque
são seus súditos. Quem adora o Estado precisa pagar o preço com a vida.