Sobretudo com câmeras e gravadores por perto, certas
demonstrações de vassalagem exigem mais coragem do que atos de bravura em
combate ─ desses que rendem condecorações capazes de matar a família de orgulho
e matar de inveja a vizinhança. A brasileiríssima tribo dos jornalistas a favor
é imbatível nessa ousada forma de pusilanimidade. Se bajulação temerária fosse
uma modalidade olímpica, os craques da imprensa fariam bonito nos Jogos do Rio.
O vídeo que exibe trechos das entrevistas concedidas por
Dilma Rousseff na Suécia e na Finlândia avisa que a turma está em ótima forma.
Decididos a abater a pauladas quem sugere o atalho do impeachment para encurtar
a passagem pelo Planalto da pior governante da história, os soldados da
desinformação confirmaram que expor publicamente a alma subalterna não é para
qualquer poltrão. Só não teme o espetáculo da sabujice quem tem coração
valente.
No dia 18 de outubro, um domingo, Dilma chegou para a
conversa em Estocolmo compreensivelmente tensa. Acuado pela Operação Lava Jato,
atarantado com a crise econômica ainda em seu começo, abandonado por aliados
que fogem do naufrágio nas urnas, desprovido de programas ou ideias, o poste
que Lula instalou no coração do poder tem um único projeto claramente definido:
manter o emprego.
Vai começar a sessão de tortura, parece murmurar a crispação
do rosto, sublinhada pelas sobrancelhas arqueadas e pelos lábios irrequietos. O
que vai começar é a vassalagem, corrige já na primeira pergunta um
entrevistador estatizado. Ele não aparece na tela. Ouve-se apenas a voz de
apresentador de desfile de escolas no 7 de Setembro formulando a questão
inverossímil: “O caso do Eduardo Cunha repercutiu no mundo inteiro, foi notícia
de jornais do mundo inteiro. Isso não causa um certo constrangimento ao governo
brasileiro, embora seja o Poder Legislativo, como a senhora disse?”
Quer dizer que no resto do planeta não se publicou sequer
uma vírgula sobre a maior roubalheira ocorrida desde o Dia da Criação? Quer
dizer que em todos os países só se fala em Eduardo Cunha? Até Dilma se mostra
espantada com a novidade formidável: o correntista suíço ocupa tanto espaço
no noticiário em língua estrangeira
sobre o Brasil que não sobram míseros cantos de página para tratar do monumental
esquema corrupto que esvaziou os cofres da estatal indefesa.
Com cara de quem achara aquilo bom demais para ser verdade,
a entrevistada explica que a extraordinária notoriedade internacional do
presidente da Câmara não lhe causa constrangimento. “Seria estranho se
causasse… ele não integra o meu governo”. Pausa. Três ou quatro entrevistadores
falam ao mesmo tempo. “Ah, eu lamento que seja um brasileiro, se é isso que
você está perguntando”, prossegue Dilma.
Outro entrevistador endossa os patrióticos receios do
companheiro de profissão e de luta: “A senhora acha ruim para a imagem do
país?” Quer dizer que o que deixa o Brasil mal no retrato não é o assombroso
desempenho no campeonato mundial da corrupção institucionalizada, nem a
vertiginosa ascensão no ranking planetário da incompetência administrativa, mas
sim o parlamentar que engordou contas secretas com negociatas das quais
participou por integrar a base alugada do governo Lula? Haja cinismo.
“Olha, eu não diria…eu… eu acho que se distingue
perfeitamente, no mundo, o país de qualquer um de seus integrantes”, segue em
frente a sopa de letras servida pelo neurônio solitário. “Nenhum país pode ser
julgado por isso ou por aquilo, nem o Brasil, nem a Suécia, nem os Estados
Unidos”, desanda a Mãe do Petrolão antes de encerrar o palavrório: “Eu lamento
que aconteça com um brasileiro, um cidadão brasileiro”. Cunha rebateu de bico
no dia seguinte: “Eu lamento que seja com o governo brasileiro o maior
escândalo de corrupção do mundo”.
Na terça, em Helsinque, Dilma avisou que não iria responder
a Eduardo Cunha antes de responder a Eduardo Cunha. “O meu governo não está
envolvido em nenhum escândalo de corrupção”, delira no fim do vídeo a faxineira
que vive cercada de lixo. “Não é o meu governo que está sendo acusado
atualmente”. Como é que é?, teria berrado um jornalista independente se
comitivas presidenciais reservassem alguma vaga a essa espécie em extinção.
Como pode uma presidente da República tratar a verdade com tamanha selvageria?
Nenhum dos presentes ousou assombrar-se com a desfaçatez da
viajante. Nenhum se atreveu a balbuciar a obviedade evocada por Eduardo Cunha
na quarta-feira: “Eu não sabia que a Petrobras não faz parte do governo”. O
silêncio dos rapazes da imprensa confirmou que ali só havia gente sem medo de
ser servil. Eles jamais perguntam o que os chefões não gostariam de ouvir. O
que deveria ser uma entrevista coletiva sempre é reduzido a um chá de senhoras
que permite a presença de jornalistas domesticados.
Dispostos a tudo para não melindrar o equilibrista que
transformou pedidos de impeachment em instrumentos de sobrevivência política,
os líderes da oposição oficial dispensaram-se de lembrar que, se os envolvidos
no Petrolão interpretassem a si próprios num filme sobre a bandalheira sem
precedentes, Eduardo Cunha apareceria nos créditos bem abaixo da dupla de
astros formada por Lula e Dilma. Seu nome disputaria espaço com a multidão de
coadjuvantes.
Nesse pelotão intermediário se acotovelam um ex-presidente
da República, ministros e ex-ministros de Estado, senadores, deputados
federais, governadores, empreiteiros, ex-diretores da Petrobras, pajés dos
partidos no poder, parentes de Lula, amigos de Lula, agregados de Lula,
doleiros de alta patente, despachantes de propinas milionárias, consultores
especializados em maracutaias, secretárias espertas, amantes gulosas, esposas
ressentidas e, claro, tesoureiros do PT. E José Dirceu, naturalmente.
Os oposicionistas incapazes de opor-se? Esses estarão
espremidos no bloco de figurantes. O Brasil tem a espécie de governo com que
sonha qualquer oposição. A sorte do bando no poder é lidar com partidos de
oposição com os quais todo governo sonha.