Por Alberto Lourival Sant'Anna – Estadão
Reportagem Especial – Protagonistas das ações mais
espetaculares da rede anarquista não foram nem sequer fichados pela polícia.
Os black blocs que executaram as ações de grande repercussão
do ano passado continuam fora do radar da polícia, e prometem transformar a Copa
do Mundo "num caos". Para isso, alguns deles esperam que o Primeiro
Comando da Capital (PCC), a organização que domina os presídios paulistas e
emite ordens para criminosos soltos, também entre em campo. Não se trata de uma
parceria, mas de uma soma de esforços.
Como compromisso de não identificá-los, o Estado ouviu 16
desses black blocs, em seis encontros, na última semana. À diferença dos
adolescentes que os imitaram em depredações, e que acabaram arrolados em um
inquérito do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), eles são
adultos, seguem tática desenvolvida há décadas na Europa e nos Estados Unidos,
não têm página no Facebook nem querem aparecer.
Dos 20 que formam o núcleo da rede, apenas um foi fichado,
porque foi detido em uma manifestação. Movem-se na sombra do anonimato,
articulam-se nacionalmente, e nunca haviam dado entrevista antes. Preocupados
com sua imagem perante a opinião pública, decidiram falar, pela primeira vez.
"Vamos estourar de novo agora", promete o mais veterano deles, de 34
anos, formado em História na USP e com matrícula trancada no curso de
Psicologia.
"Agente vai devolver o troco na moeda que o Estado
impõe", ameaça o ativista, que trabalha para um hospital público de São
Paulo. "O caos que o Estado tem colocado na periferia, por meio da
violência policial, na saúde pública, com pessoas morrendo nos hospitais, na
falta de educação, na falta de dignidade no transporte, na vida humana, é o
caos que a gente pretende devolver de troco para o Estado. E não na forma
violenta como ele nos apresenta. Mas vamos instalar o caos, sim. Esse é um
recado para o Estado."
"A gente tem certeza de que o crime organizado, o PCC,
vai causar o caos na Copa, e a gente vai puxar para o outro lado",
continua o veterano. "Não temos aliança nem somos contra o PCC. Só que
eles têm poder de fogo muito maior do que o MPL (Movimento Passe Livre, que
iniciou as manifestações, há um ano, com ajuda dos black blocs). Pararam São
Paulo", acrescentou, lembrando as ações do PCC na década passada.
O veterano e uma bailarina de 21 anos, que abandonou um
curso em uma universidade pública para se dedicar exclusivamente à causa,
contaram que membros do PCC receberam bem na Penitenciária do Tremembé
(interior paulista) dois black blocs presos na manifestação de junho do ano
passado do MPL." Colocaram colchões para eles." Igualmente, o Comando
Vermelho acolheu um ativista preso no Rio.
"Os ‘torres' respeitam o que fazemos, por causa do
nosso idealismo", explica o veterano, usando o jargão que designa os
líderes do PCC. "Eles fazem por lucro e a gente, contra o sistema. Não nos
arriscamos por dinheiro, mas para que a mãe deles também seja atendida pelo
SUS." O veterano prossegue: "Sou nascido e criado na ZL(zona leste).
Conheço muito a cara do PCC. Somos os nerds do lado da casa deles. O crime
organizado respeita agente porque nasceu de mentes pensantes. Por isso talvez
não nos coloquem na cadeia", interpreta, intrigado com o fato de a polícia
não os incomodar. "Porque vamos fazer uma revolução lá."
Tática. O veterano, que cita o anarquista canadense George
Woodcook e os Racionais MC, emprega "a tática", como eles achamam,
desde 2001, quando" quebrou" o Parque D.Pedro, no centro de São
Paulo. Em princípio, a função assumida pelos black blocs é a de resistir à
repressão e proteger os manifestantes, interpondo-se entre ele se a polícia.
Mas também a provocam, quando acham politicamente conveniente fazer com que ela
perca o controle e a razão diante da opinião pública, de modo a atrair simpatia
para um movimento.
Foi assim há um ano, na Praça da Sé, em protesto do MPL,
quando o veterano, protegendo-se apenas com sua mochila, investiu contra a
polícia de choque. Pegos de surpresa, os policiais dispararam bombas de gás
lacrimogêneo, que atingiram a multidão, enquanto ele saía de cena, ileso. A
partir dali, intensificaram- se os distúrbios.
Os black blocs, que não são um grupo estruturado, mas uma
rede, que vai se formando espontaneamente, no contato nas ruas, queimaram
carros de emissoras de TV e da polícia, depredaram14 bancos (em 40 minutos) e a
sede da Prefeitura. Protegidos por barricadas e beneficiados pela surpresa e
pelo despreparo da polícia, não foram pegos ..
Mas receberam a adesão de cerca de 100 adolescentes, que,
numa explosão de fúria, ou por terem apanhado da polícia nas manifestações ou
por ressentimentos trazidos da periferia onde moram, partiram para um
quebra-quebra descontrolado, de tudo o que aparecesse na frente. Incluindo
carros, lanchonetes e bancas de revista cujos donos pouco têm a ver com os
"símbolos do capitalismo" visados pela doutrina anarco-socialista que
predomina entre os black blocs. O núcleo original, então, saiu de cena. Voltou
há uma semana, em uma manifestação pacífica na Praça da Sé. "A gente
estava bem armado", disse o veterano, sem detalhar o tipo de arma. Eles
têm usado coquetéis molotov, pedras e escudos improvisados.
"A ação black bloc é mais incisiva e intensa numa
manifestação pacífica", afirma o veterano. Segundo ele, as ações têm de
ter uma razão de ser. "Não vejo sentido em quebrar banco na Copa",
exemplifica. Mas a violência contra bens materiais– e não contra seres vivos,
com exceção de policiais – é justificada pelos praticantes da tática. E
desculpada, no caso da ação "aleatória" de adolescentes da periferia.
"Não existe o errado e o certo", pondera. "É a revolta
dele."
Frustração..
"Ocupamos durante cinco meses a frente da Assembleia Legislativa, cheios
de boas intenções", lembra um estudante de Direito de 22 anos.
"Apresentamos uma pauta de reivindicações. Não deu em nada. Manifestação
pacífica não dá resultado."
"No último ano, houve 30 protestos, 4 muito violentos,
que foram os mais noticiados", contabiliza um profissional de Marketing e
estudante de Ciência Política de 32anos, que doutrina os black blocs e seus
seguidores com textos anarquistas. "Os outros não receberam uma
linha."
A socióloga espanhola Esther Solano, professora da
Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora dos black blocs, vê uma
distorção nessa atenção dada às depredações. "Num país onde mais de 50 mil
pessoas são mortas por ano, como é possível essa histeria com 40 garotos?",
pergunta. "Um país que naturaliza tanto a sua violência não tolera ver a
violência na Avenida Paulista." O veterano acrescenta: "No Brasil,
choca mais 14 bancos quebrados do que a polícia matar 6 crianças".
"A manifestação não pode ser pacífica, sendo que é
resposta à repressão estatal e capitalista", argumenta um rapaz de 18
anos, que estuda e trabalha, mas não quis dar mais detalhes sobre si mesmo.
"O Estado sendo opressor, esmagando a população, obrigando a morrer na
fila do SUS, isso é violento, e a resposta é autodefesa." O veterano
completa: "É legítimo quebrar banco. Quantas pessoas os bancos quebram por
dia?" Com relação a depredar bens públicos que depois terão de ser
reparados com dinheiro dos impostos, ele responde: "O imposto já é
roubado. Dizer que o dinheiro vai sair do nosso bolso é mentira, porque já
saiu. Alguém tem saúde digna? Então não reclame de vandalismo."
Contágio. Os black blocs acreditam que sua revolta esteja se
espalhando pelas camadas mais pobres da população." O bagulho que mais
gostei da semana passada foi a greve dos motoristas", disse a moça de 21
anos, que vive da renda de um aluguel. "Estamos mostrando na rua a tática,
e queremos que as pessoas se apropriem", acrescenta uma estudante de
Ciências Sociais "na casa dos 30", que, como muitos deles, tem receio
de fornecer detalhes nesta reportagem e finalmente entrar no radar da polícia.
"A barricada é útil quando o Choque chega para desocupar uma área",
exemplifica. "Uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) foi queimada em uma
favela do Rio em protesto contra a violência policial."
Sete membros do núcleo participaram da ocupação da Câmara
Municipal do Rio, no ano passado. Eles também estão associados a um grupo no
Recife, uma das cidades do Nordeste que visitaram. "Fomos fazer campo de
base", disse o veterano. Ativistas colombianos e venezuelanos vieram
trocar experiências com eles. A bailarina está interessada nos zapatistas, e
prepara-se para ir visitá-los no México. Ela gosta do filósofo
germano-americano Herbert Marcuse, ideólogo da contracultura, para quem
"não temos que quebrar o sistema nem por dentro nem por fora, mas por suas
brechas".
Alguns abandonaram estudos e trabalho para se dedicar à
causa em tempo integral. Outros a conciliam com uma vida "normal".
Têm carros e cedem seus apartamentos para a "causa". O repórter do
Estado esteve em dois "aparelhos", para usar um termo dos anos 70, na
região da Avenida Paulista. Num deles, o anfitrião calçava pantufas de ursinho.
Em duas situações, o repórter viu black blocs dando esmolas na rua.
Pessoalmente, são gentis e educados, em contraste com a imagem de violência
associada a eles.
O perfil social dos black blocs é variado. Alguns são pobres
e moram na periferia. Outros são de classe média baixa e vivem na região
central da cidade. O repórter conheceu apenas um caso de um rapaz de classe
alta, cujos pais moram em um bairro nobre de São Paulo. Depois de ler o
primeiro texto anarquista, aos 13 anos, pediu para seus pais pararem de pagar
escola para ele. Hoje com 18 anos, mora com a namorada na região oeste de São
Paulo, trabalha e estuda, e participa das ações mais ousadas dos black blocs.
Polícia. Quase todos concluíram, abandonaram ou fazem
faculdade. E sofreram violência policial. Quando o veterano tinha 14 anos, a
polícia veio despejar sua família do barraco em que viviam, no Parque São Luís,
na zona norte de São Paulo. "Estávamos devendo o aluguel e parece que o
dono tinha um parente militar, porque a polícia não pode chegar assim, sem um
mandado", recorda. "Um policial alterou a voz com a minha mãe, entrei
na frente e ele deu um tapa na minha cara. Eu nunca tinha apanhado, nunca tinha
tacado pedra na polícia. Hoje, jogo coquetel molotov com gosto."
"A maioria dos presos é punk", diz o veterano.
"Agente ‘cola' muito com os punks. São inteligentes, não são
vândalos", continua, empregando esse termo para quem depreda
aleatoriamente, sem seguira tática, que preconiza ações com motivo claro.
" Não cobrem a cara. Em tudo o que eles acham justo, eles estão. A polícia
prende os punks e, por causa da cor da roupa, diz que são black blocs."
Um rapaz de 20 anos conta que aderiu à tática depois de
levar três balas de borracha da polícia – uma na perna esquerda e outra nas
costas, no distúrbio na Rua Maria Antonia, no dia 13 de junho; e uma no
estômago, na manifestação do 7 de Setembro, a que teve a maior participação de
black blocs e de seus seguidores adolescentes.
"Não vejo sentido em quebrar banco, mas vejo a polícia
como órgão repressor, e nosso papel é proteger os manifestantes", assinala
o rapaz, que estuda Direito em uma faculdade privada, com100% de bolsa do Pro
Uni, e faz estágio em uma imobiliária. Ele mora em um bairro da região central
com a mãe, empregada doméstica.
A bailarina afirma ter sido assediada sexualmente por
policiais, antes de aderir à tática.
Um programador de 32 anos que apoia o movimento acredita que
seu pai, que era dono de um bingo, tenha sido morto por policiais, por não
pagar a quantia exigida por eles para manter o negócio funcionando, quando se
tornou ilegal, em 1998. Seus conhecimentos profissionais são valiosos para os
black blocs, que se apoiam na atividade de hackers. No primeiro encontro com o
repórter do Estado, o veterano lhe disse: "O seu CPF não é de São
Paulo", para deixar claro que o havia investigado.
Fonte: A Verdade Sufocada
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