Lá vou eu procurar sarna para me coçar, não é?, mas por que
não? Morreu Gabriel García Márquez, ao 86 anos. Foi um escritor de
extraordinário e genuíno talento. O justamente celebrado “Cem Anos de Solidão”
será sempre um grande romance, sem chance, acho para revisões. Era também um
contista formidável. Os textos reunidos em “A Incrível e Triste História de
Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada” o colocam entre os mestres do gênero.
García Márquez conseguiu, como ninguém, traduzir em palavras a cor local da América
espanhola — que não é a nossa, leitor amigo, porque gongórica, mística,
assaltada por fantasmas de culturas remanescentes esmagadas pela colonização,
mas muito presentes no imaginário cotidiano.
Tinha uma outra qualidade sem a qual este conservador que
escreve não vê a possibilidade de um romance ou de um conto vir à luz: sabia
contar uma história que sempre se projetava além das irresoluções e chiliques
do eu-narrador, como virou moda hoje em dia. Gabriel García Márquez dominava
plenamente seu ofício e brincava com as palavras. Sua literatura tinha cor,
tinha cheiro, tinha gosto. Reinventou o realismo mágico e criou um estilo. É
muito mais do que pode ambicionar um grande escritor. Tinha uma outra virtude:
não era, e sabia que não era, um pensador. Sua literatura nunca é sentenciosa
ou programática. E, por isso, eu o aplaudo.
Mas vaio também. O escritor genial era um idiota político, e
não é possível negligenciar esse aspecto de sua persona pública. Amigo pessoal
de Fidel Castro, cujos crimes defendeu de modo incondicional, García Márquez
flertou com as teses mais estúpidas sobre a América Latina, quando não as
endossou. Estou entre os que advogam a independência do território da arte. O
gigantesco poeta americano Ezra Pound não deve ser lido — já escrevi isto
algumas vezes — em razão de sua simpatia pelo fascismo, o que lhe rendeu a
prisão numa espécie de manicômio. Céline era um grande escritor e um
antissemita asqueroso. O russo Máximo Górki, talentosíssimo, visitava,
acreditem, em companhia do tirano Stálin, campos de trabalhos forçados — que é
o nome que os campos de concentração receberam na União Soviética. Pior do que
isso: beneficiava-se da intimidade com o poder. Tinha à sua disposição uma fabulosa
“datcha” — a casa de campo para passar o verão e a primavera — que lhe
proporcionava o regime. Era tal a sua intimidade com o poder que ele próprio
virou nome de uma “Datcha”, que servia aos regalos da burocracia soviética.
Como Górki pôde ser tão estúpido? Como é que Pound não
percebeu a natureza do fascismo? Por que Céline não se dava conta da
indignidade essencial do antissemitismo? Vamos morrer sem ter essas respostas.
No fim das contas, não aceitamos a ideia de que uma pessoa de gênio na sua arte,
seja ela qual for, possa estar estupidamente errada sobre um porção de coisas.
O gênio artístico não obriga ninguém a fazer as escolhas morais razoáveis. Boas
pessoas podem ser terrivelmente estúpidas. E canalhas podem ser gênios
insuperáveis.
É difícil conviver com isso. Ofende o nosso senso de decoro.
excelente texto!
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