sábado, 19 de abril de 2014

García Márquez: outro homem de gênio que era um idiota


Lá vou eu procurar sarna para me coçar, não é?, mas por que não? Morreu Gabriel García Márquez, ao 86 anos. Foi um escritor de extraordinário e genuíno talento. O justamente celebrado “Cem Anos de Solidão” será sempre um grande romance, sem chance, acho para revisões. Era também um contista formidável. Os textos reunidos em “A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada” o colocam entre os mestres do gênero. García Márquez conseguiu, como ninguém, traduzir em palavras a cor local da América espanhola — que não é a nossa, leitor amigo, porque gongórica, mística, assaltada por fantasmas de culturas remanescentes esmagadas pela colonização, mas muito presentes no imaginário cotidiano.

Tinha uma outra qualidade sem a qual este conservador que escreve não vê a possibilidade de um romance ou de um conto vir à luz: sabia contar uma história que sempre se projetava além das irresoluções e chiliques do eu-narrador, como virou moda hoje em dia. Gabriel García Márquez dominava plenamente seu ofício e brincava com as palavras. Sua literatura tinha cor, tinha cheiro, tinha gosto. Reinventou o realismo mágico e criou um estilo. É muito mais do que pode ambicionar um grande escritor. Tinha uma outra virtude: não era, e sabia que não era, um pensador. Sua literatura nunca é sentenciosa ou programática. E, por isso, eu o aplaudo.

Mas vaio também. O escritor genial era um idiota político, e não é possível negligenciar esse aspecto de sua persona pública. Amigo pessoal de Fidel Castro, cujos crimes defendeu de modo incondicional, García Márquez flertou com as teses mais estúpidas sobre a América Latina, quando não as endossou. Estou entre os que advogam a independência do território da arte. O gigantesco poeta americano Ezra Pound não deve ser lido — já escrevi isto algumas vezes — em razão de sua simpatia pelo fascismo, o que lhe rendeu a prisão numa espécie de manicômio. Céline era um grande escritor e um antissemita asqueroso. O russo Máximo Górki, talentosíssimo, visitava, acreditem, em companhia do tirano Stálin, campos de trabalhos forçados — que é o nome que os campos de concentração receberam na União Soviética. Pior do que isso: beneficiava-se da intimidade com o poder. Tinha à sua disposição uma fabulosa “datcha” — a casa de campo para passar o verão e a primavera — que lhe proporcionava o regime. Era tal a sua intimidade com o poder que ele próprio virou nome de uma “Datcha”, que servia aos regalos da burocracia soviética.

Como Górki pôde ser tão estúpido? Como é que Pound não percebeu a natureza do fascismo? Por que Céline não se dava conta da indignidade essencial do antissemitismo? Vamos morrer sem ter essas respostas. No fim das contas, não aceitamos a ideia de que uma pessoa de gênio na sua arte, seja ela qual for, possa estar estupidamente errada sobre um porção de coisas. O gênio artístico não obriga ninguém a fazer as escolhas morais razoáveis. Boas pessoas podem ser terrivelmente estúpidas. E canalhas podem ser gênios insuperáveis.

É difícil conviver com isso. Ofende o nosso senso de decoro.

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