Por José Maria e Silva*
No país do analfabetismo funcional, novo plano de educação
negligencia o mérito, põe a escola contra a família e, em vez de estimular a
leitura, policia as palavras, transformando a língua num instrumento de
opressão ideológica.
Durante uma audiência pública da Comissão de Educação,
Cultura e Esporte do Senado Federal, realizada em 22 de outubro do ano passado,
o economista e professor Cláudio de Moura Castro, ao término de sua palestra,
resolveu apresentar uma proposta ao Plano Nacional de Educação (PNE 2011-2020).
Professor visitante de renomadas universidades estrangeiras, Ph.D. em Economia
pela Vanderbilt University, nos Estados Unidos, e conceituado pesquisador da
educação, com vários livros publicados, Moura Castro, com um ligeiro sorriso no
rosto, anunciou: “Já que todo mundo botou um negócio no plano, um artiguinho,
eu também quero propor um artiguinho no plano: um bônus para as caboclinhas de
Pernambuco e do Ceará conseguirem se casar com os engenheiros estrangeiros,
porque aí eles ficam [no País], e aumenta o capital humano no Brasil, aumenta a
nossa oferta de engenheiros”.
A declaração provocou um manifesto de repúdio de cerca de 50
entidades de todo o País, desde a União Nacional dos Estudantes até o Instituto
Paulo Freire, passando pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação (Anped) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, um movimento
que congrega cerca de 200 entidades, entre elas o indefectível Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que, por mais estranho que pareça, é um
de seus coordenadores. Para essas entidades, a declaração de Moura Castro é
“inadmissivelmente machista e discriminatória” e “manifesta um preconceito
regional e racial inaceitável”, inclusive sugerindo a subjugação das mulheres
por estrangeiros. Elas exigiram uma retratação do professor e prometeram
recorrer até a Dilma Rousseff, como se já vivêssemos numa ditadura totalitária
e a presidente tivesse poder para autorizar ou não o livre pensamento.
Cláudio de Moura Castro, economista e pesquisador,
denuncia
os delírios do Plano Nacional de
Educação. (Foto: Paulo Antunes)
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O humor pode não ser o forte do professor Cláudio de Moura
Castro e sua declaração revela certo mau gosto. Como carioca, ele poderia
propor o bônus para as calipígias passistas das escolas de samba que se expõem
muito mais ao olhar estrangeiro do que as caboclinhas do sertão nordestino,
poupando Pernambuco e Ceará de uma referência gratuita. Mas é um exagero
considerar uma mera frase infeliz como discriminatória, preconceituosa e
machista, até ameaçando o professor com processo judicial, sobretudo quando se
conhece o contexto em que foi formulada. Essas entidades participaram da
audiência pública no Senado e sabem que Cláudio de Moura Castro, com seu
chiste, queria apenas mostrar o quanto o Plano Nacional de Educação não passa
de uma absurda colcha de retalhos, que carreou para dentro de si os
particularismos dos mais diversos guetos ideológicos, que nada têm a ver com a
sociedade brasileira, muito menos com a sala de aula.
Marxismo avança até nas engenharias
O Brasil herdou o ensino retórico de Portugal, calcado nas
humanidades, e não consegue formar profissionais técnicos em número suficiente
para atender sua indústria. Uma forma de enfrentar esse problema seria
priorizar as ciências naturais e exatas no ensino básico, formando nos jovens
um espírito prático, voltado para os fatos e não para a retórica, mas esse não
é o caminho adotado pelo ensino atual; muito pelo contrário, a educação
brasileira é cada vez mais conceitual, afetada, metalinguística, encarquilhada
sobre si mesma, num quase completo desprezo pela realidade em torno, salvo
quando essa realidade se presta a devaneios ideológicos, como a “resistência”
dos sem-terra, a “tradição” dos quilombolas, a “cultura” das favelas, o
“empoderamento” dos drogados, entre outras minorias de estimação nas quais se
proteja a utopia de boa parte da elite intelectual.
Hoje, mesmo os cursos técnico-profissionalizantes são
profundamente contaminados pela retórica ideológica da esquerda. Em grande
parte das faculdades de Engenharia, por exemplo, as disciplinas de ciências
humanas são calcadas numa bibliografia marxista ou neomarxista, privando o
aluno de uma visão plural, que incorpore, também, pensadores liberais ou
conservadores. Isso ocorre, sobretudo, nas faculdades de Engenharia Ambiental,
em que a bibliografia da parte de humanidades do curso parece destinada a
inculcar no aluno que o capitalismo é o inimigo por excelência do meio
ambiente, esquecendo-se que os regimes totalitários, como o stalinismo ou a
Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, não têm motivo algum para respeitar a
natureza bruta, uma vez que não são capazes de respeitar nem a natureza humana.
É no contexto de uma educação que tenta transformar em
instrumento ideológico até as engenharias que Cláudio de Moura Castro saiu-se
com seu gracejo sobre os engenheiros e as caboclinhas. Foi uma forma que
encontrou de atacar também o holismo obsessivo do ensino brasileiro, que
professa uma suposta visão integral de cada fenômeno social e humano, buscando
dominar o homem e a natureza por todos os poros e átomos no afã de construir o
outro mundo possível, em que tudo deve ser planejado nos mínimos detalhes, como
queria a União Soviética no esplendor de sua utopia totalitária. A pedagogia de
Paulo Freire é herdeira dessa utopia holística, que transforma o professor em
aprendiz e o aluno em mestre, sob o falso pretexto de que o ensino jamais pode
ser transmissão de conteúdo e deve dar à embrionária vivência de um adolescente
o mesmo peso que o conhecimento acumulado pela humanidade adquiriu em séculos.
Não poderia haver ironia melhor – até em face da teoria de
gêneros que se tenta impor na educação, negando os sexos biológicos – do que
associar o aumento do número de engenheiros no País à cadeia hormonal das
caboclinhas, estimulada pela intervenção holística do Estado através da
concessão de bônus. O Plano Nacional de Educação está cheio desse tipo de
associação indevida entre aprendizado e fatores sociais diversos, como se
aprender a ler e contar fossem atividades indissociáveis da vida cotidiana e
não pudessem ser ensinadas sem que antes se revolucionasse todo o contexto
social da criança. É esse tipo de mentalidade holística que faz com que o Plano
Nacional de Educação se ocupe de ninharias tão absurdas que, já em sua Meta 2,
uma das estratégias preconizadas é a renovação e padronização da frota rural de
veículos escolares, como se prescrever o modelo e a cor desses veículos, desde
a Amazônia aos Pampas, passando pelo Cerrado, fosse tão importante quando
dispor de uma boa metodologia de ensino da tabuada, por exemplo.
Plano é “advocacia em causa própria”
É esse tipo de problema que levou o professor Claudio de
Moura Castro, em sua palestra no Senado, a chamar o novo Plano Nacional da
Educação 2011-2020 de “equivocado e inócuo”. Acertadamente, ele observa que o
PNE é um somatório das idiossincrasias de diversos grupos advogando em causa
própria, o que resultou num conjunto de mais de 2 mil propostas para a
educação, muitas vezes incompatíveis entre si e quase sempre impossíveis de
serem postas em prática. Entre as medidas que considera impossíveis, Moura
Castro citou uma das estratégias da Meta 12, que pretende elevar para 90% o
porcentual de conclusão dos cursos de graduação do ensino superior, quando se
sabe que, mesmo nos Estados Unidos, o índice de evasão nas universidades chega
a 50%. Outra meta que considerou irreal é a proposta de erradicação do
analfabetismo absoluto até 2020, sobretudo – acrescento eu – porque a própria
escola construtivista, regida pela aprovação automática, é uma usina de
produção de analfabetos que, com alguma sorte, se tornam analfabetos funcionais
quando chegam à universidade.
Parafraseando o delírio de Brás Cubas, do célebre romance de
Machado de Assis, pode-se dizer que o Plano Nacional de Educação é “uma figura
nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de
improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da
ideologia”. O PNE 2011-2020 já é sintoma de uma das mais graves doenças da era
lulo-petista: o conferencismo – versão oficial do assembleísmo que o PT levou
para as entranhas do Estado ao chegar ao poder em 2002. Segundo um estudo do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), desde que Getúlio Vargas
convocou a primeira conferência nacional no Brasil, sobre saúde, no início da
década de 40, já foram realizadas 115 conferências nacionais, das quais 74
(64,3%) ocorreram no governo Lula, envolvendo cerca de 10 milhões de pessoas. E
com um diferencial: antes, as conferências quase sempre se restringiam a
setores como a saúde; com Lula, passaram a contemplar os mais variados setores,
sobretudo as minorias.
O PNE é fruto da I Conferência Nacional de Educação,
realizada em 2010 e precedida por conferências municipais e estaduais,
contabilizando, no seu sistema de relatoria, 5.300 registros de inserção com propostas
dos segmentos participantes. Já o documento-base da II Conferência Nacional de
Educação, a ser realizada em novembro deste ano, contabiliza 11.488 registros
de inserção, o que significa aproximadamente 30 mil emendas. Como se vê, não é
por falta de palpiteiros que a educação brasileira vai mal. Essa segunda
conferência estava programada para fevereiro deste ano e já foi precedida de
conferências municipais e estaduais, mobilizando a militância de esquerda
travestida de movimento social espontâneo. Mas o MEC acabou adiando sua
realização para novembro próximo, fato que gerou indignação entre as entidades
envolvidas. Segundo elas, o objetivo do adiamento foi esvaziar o poder de
pressão da conferência, que iria coincidir com a votação do Plano Nacional de
Educação no Congresso. As entidades defendem o projeto aprovado na Câmara e
acusam o governo de apoiar a revisão feita pelo Senado, que excluiu, por
exemplo, a polêmica questão de gênero.
O projeto de lei do Plano Nacional de Educação foi enviado
pelo então presidente Lula ao Congresso em dezembro de 2010, com a proposta de
“ampliar progressivamente o investimento público em educação até atingir, no
mínimo, o patamar de 7% do PIB” – mas sem data para se concretizar. Em 2012, o
projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados, que, dominada pelo petismo mais
radical, se encarregou de piorar o que já era ruim, estabelecendo um
investimento de 7% do PIB em educação até o quinto ano de vigência do plano e,
no mínimo, 10% do PIB ao final de dez anos. Com a ressalva: esse investimento
seria feito exclusivamente na educação pública, deixando de fora entidades
filantrópicas e assistenciais. O Senado manteve esses índices, mas suprimiu a
restrição aprovada na Câmara, permitindo o investimento público em entidades
assistenciais, entre as quais, é bom lembrar, encontram-se as Apaes, que
prestam um relevante serviço para as crianças com deficiência mental.
Ideólogos criam guerras de raça e gênero
Outro ponto polêmico do plano é a questão de gênero, que já
constava do projeto original do Executivo, mas de forma menos radical, falando
apenas em “implementar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito
e discriminação à orientação sexual ou à identidade de gênero, criando rede de
proteção contra formas associadas de exclusão”. Na Câmara, acrescentou-se a
esse texto a discriminação racial. Como se não bastasse a incitação à guerra de
raças, os deputados tornaram o texto mais prolixo, acrescentando novas
diretrizes ao plano, entre elas a “superação das desigualdades educacionais,
com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação
sexual”. Percebem a brutal diferença? Não se trata mais de combater a possível
discriminação de um aluno homossexual, mas de promover a “igualdade de gênero”,
o que significa igualar ao sexo biológico as mais variadas fantasias de
desajustados sexuais, perseguindo o que os ideólogos chamam pejorativamente de
“heteronormatividade”, isto é, o sexo papai-e-mamãe, que deve ser discriminado
na escola em nome das relações homem-com-homem, mulher-com-mulher,
trans-com-todos etc.
Para se ter uma ideia da importância que a maioria petista
da Câmara dá à questão, essa diretriz é a terceira, logo depois da “erradicação
do analfabetismo” (primeira) e da “universalização do atendimento escolar”
(segunda) e à frente de “melhoria da qualidade da educação” (quarta) e
“formação para o trabalho e a cidadania” (quinta). O Senado bem que tentou
corrigir essa insanidade e, onde a Câmara falava em preconceito de gênero e
raça, os senadores falam em “políticas de prevenção à evasão motivada por
preconceito”. Já no trecho em que a Câmara falava em “promoção da igualdade
racial, regional, de gênero e de orientação sexual”, o Senado, agindo com bom
senso, sintetizou: “com ênfase na promoção da cidadania”. Agora que o Plano
Nacional de Educação voltou à Câmara, o relator do substitutivo oriundo do
Senado, deputado Angelo Vanhoni (PT-PR), já recomendou, em seu relatório, que
o texto aprovado na Câmara seja restabelecido, com a ênfase na questão de
gênero – para gáudio das minorias de estimação do PT e desespero da bancada
evangélica, talvez o único setor da sociedade a perceber, até agora, o grande
perigo da ditadura gay.
Instituindo a novilíngua orweliana
O preciosismo ideológico da maioria petista na Câmara é
tanto que o projeto do Executivo foi reescrito na novilíngua orwelliana: sempre
que apareciam expressões como “os estudantes”, “os alunos”, “os profissionais
da educação”, foram acrescentadas as partículas “os/as”, tornando o texto
ilegível: “os(as) estudantes”, “os(as) alunos(as)”; “os(as) profissionais de
educação”. O Senado, primando pela boa técnica legislativa e pelo bom senso
antropológico, suprimiu todos esses penduricalhos feministas do texto, para
indignação do deputado Ângelo Vanhoni, que, em seu relatório, já recomendou a
recomposição da vulgata feminista da Câmara. Caso o Plano Nacional de Educação
seja aprovado, em definitivo, com essa redação sexista (isso mesmo: sexista), a
nação brasileira corre o risco de ter sua língua sequestrada pelos ideólogos de
esquerda. Não tardam e hão de querer revisar o texto da própria Constituição
para adicionar-lhe esses penduricalhos de mau gosto.
Um ideólogo nunca é apenas antiético – é também ilógico.
Como dizia Durkheim, um mínimo de lógica exige um mínimo de moral e vice-versa.
Não adianta lutar contra a natureza da língua, que, mesmo se realizando nos
seus falantes, é muito maior do que eles. De que adianta escrever “aluno(a)”,
achando que assim se evita o suposto machismo da língua portuguesa, sem
perceber que o gênero masculino do substantivo (“aluno”) aparece como a palavra
principal, da qual o gênero feminino é apenas um apêndice, feito uma Eva
linguística retirada da costela masculina do idioma? Qual seria a solução para
evitar isso? Escrever “aluna(o)”, “amiga(o), “irmãs(os)? Nem as feministas têm
coragem suficiente para fazer essa inversão, tanto que os grupos mais radicais
preferem subverter completamente a língua, escrevendo impronunciáveis
“alunxs”, “amigxs”, “namoradxs”, muito mais para agradar o sexo cambiante dos
gays do que para valorizar, de fato, as mulheres.
Uma opção seria variar o gênero da palavra principal. Mas
como decidir os critérios para essa escolha? Contabilizando quantos homens e
mulheres há na categoria mencionada e optando pelo gênero que fosse a maioria?
Ainda assim, o suposto machismo não iria desaparecer – apenas mudaria de lugar,
transferindo-se da língua para a sociologia. As funções e profissões
socialmente valorizadas, nas quais os homens são a grande maioria, continuariam
sendo escritas primeiramente no masculino: neurocirurgião(ã), engenheiro(a),
ministro(a), juiz(a); enquanto para as mulheres sobrariam: “doméstica(o)”,
“enfermeira(o)”, “educadora(or)”. Isso mostra que a língua é complexa demais
para caber na lógica mecanicista da luta de classes ou no ressentimento
maniqueísta das minorias de estimação.
Ao querer neutralizar as palavras de suas eventuais cargas
negativas, a esquerda revela seu espírito totalitário, pois uma língua que não
soubesse exprimir desigualdade, preconceito e ódio não seria uma linguagem
humana e mataria seus falantes de angústia. A propósito, os ideólogos que não
acreditam nas determinações sociais do sexo biológico e acham que tudo é
construção de gênero saberiam me dizer se o masculino de “babá” é “babão”? Como
se vê, um Plano Nacional de Educação que, no país do analfabetismo funcional,
negligencia o mérito, incita a escola contra a família e, em vez de estimular a
leitura, policia as palavras, transformando a língua num instrumento de
opressão ideológica, nada tem a ver com ensino – é apenas uma doutrinação
totalitária que tenta fazer da escola uma incubadora de subversões.
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*José Maria e Silva é sociólogo e jornalista. - Publicado no
Jornal Opção.
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