Nada como uma vaia depois da outra para embaralhar a
partitura da ópera dos malandros, desafinar o coro dos contentes, tirar o sono
dos sacerdotes da seita, emudecer o seu único deus, escancarar a indigência
mental da guardiã do rebanho, abalar a fé do mais fanático devoto, induzir
convertidos de aluguel a flertar com outros altares. Nada como uma vaia depois
da outra para assombrar as madrugadas de quem até outro dia dormia contando
votos da vitória no primeiro turno e acordava sonhando com a proclamação da
república bolivariana.
As manifestações de rua de 2013 implodiram a farsa do Brasil
Maravilha, mas os alvos dos protestos não foram identificados tão claramente
quanto neste outono. Os destinatários das mensagens sonoras agora têm nome,
sobrenome, endereço e filiação partidária. Cresce em progressão geométrica a
imensidão de brasileiros que enxergam as coisas como as coisas são. Milhões de
lesados descobriram que o bando acampado no coração do poder foi longe demais
até para os padrões do País do Carnaval. E exigem mudanças imediatas.
Todos constataram que o governo lulopetista recruta e
acoberta corruptos. Que a roubalheira impune agora é medida em bilhões de
dólares. Que os ineptos e os larápios se associaram para enterrar em estádios
padrão Fifa o dinheiro que poderia abrandar pavorosas carências no universo da
saúde e da educação. Que as promessas não descem dos palanques. Constataram,
enfim, que lidam há 12 anos com vendedores de nuvens e camelôs de si próprios.
Alheio às alterações na paisagem, o marqueteiro João Santana
imaginou, depois de consumir uma semana na releitura de pesquisas recentes, que
a curva descendente da candidata à reeleição seria invertida por outro comício
eletrônico transmitido em cadeia nacional. Péssima ideia: a discurseira na
véspera do Dia do Trabalho só serviu para comprovar que as cartas na manga
acabaram, que as mágicas de picadeiro perderam o encanto e que truques outrora
infalíveis ficaram subitamente grisalhos.
Habituada a conjugar impunemente os três verbos preferidos
de Lula — mentir, tapear, distorcer —, Dilma soube tarde demais que o senador
Aécio Neves e o ex-governador Eduardo Campos não deixariam nenhum embuste sem
revide, nenhuma invencionice sem réplica. Dispostos a provar que a oposição
voltou de vez das férias, os candidatos do PSDB e do PSB à sucessão
presidencial assumiram o papel de porta-vozes dos descontentes.
Dilma garantiu, por exemplo, que “a inflação continuará
rigorosamente sob controle”. Ouviu que não se pode continuar o que não começou.
Ao “reafirmar o compromisso do governo com o combate incessante e implacável à
corrupção”, foi convidada a suspender a guerra de extermínio movida contra quem
se atreve a investigar patifarias bilionárias consumadas nas catacumbas da
Petrobras. E a tentativa de responsabilizar a oposição pelos estragos na imagem
da estatal soou como anedota improvisada por patriotas de galinheiro.
“Os brasileiros não aceitam mais a hipocrisia”, recitou no
fim do comício. Não aceitam mesmo, reiteraram as comemorações do Primeiro de
Maio em São Paulo. Pela primeira vez desde a fundação do PT em 1980, figurões
do Partido dos Trabalhadores foram impedidos de discursar no Dia do Trabalho. O
ministro Ricardo Berzoini e o prefeito Fernando Haddad, por exemplo, não
conseguiram abrir a boca sequer no palanque da CUT, controlada desde sempre por
pelegos companheiros. Lula e Dilma nem deram as caras por lá. Na tarde
seguinte, obrigada a visitar a Expozebu, a presidente reencontrou em Uberaba —
três vezes — as vaias das quais escapara na véspera.
Nas primeiras 72 horas de maio, João Santana aprendeu, entre
outras lições sempre úteis, que o país que não é para amadores também trata sem
clemência adivinhos de botequim. Confrontado com a epidemia de apupos (e com
mais uma pesquisa atulhada de más notícias para o Planalto), ele certamente se
lembrou da entrevista, concedida em dezembro de 2010, em meio à qual resolveu
restaurar a monarquia, transformar o gabinete presidencial em sala do trono e
coroar Dilma Rousseff.
“Como se trata de uma figura única, que uma nação precisa de
séculos pra construir, a ausência de Lula deixa uma espécie de vazio oceânico”,
ressalvou o marqueteiro do reino. Apesar disso, ou por isso mesmo, Dilma tinha
tudo para transformar-se na herdeira que todo súdito pede a Deus. “A República
brasileira não produziu uma única grande figura feminina, nem mesmo conjugal”,
ensinou Santana. “O espaço metafórico da cadeira da rainha só foi parcialmente
ocupado pela princesa Isabel. Dilma tem tudo para ocupar esse espaço”.
Em novembro de 2012, festejou o acerto da profecia. “Foi uma
metáfora que está se cumprindo simbolicamente”, cumprimentou-se o imaginoso
publicitário baiano. “Grandes camadas da população têm um respeito, uma
admiração e um carinho tão sutil por Dilma que chega até a ser de uma forma
majestática”. Os fatos já aposentaram faz tempo o professor de história e o
vidente. O marqueteiro só sobreviverá se esquecer os escombros do trono e
concentrar-se nas rachaduras do palanque.
Mas vai perder seu tempo se ceder à tentação de descobrir a
cura da vaia. E acabará perdendo o emprego.
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