Por VaniaLCintra
É muito triste, mas é interessante observar a compulsão
generalizada, que ataca, tal como uma virulenta epidemia, todos os que nasceram
antes, durante ou logo depois de 1964, levando a cada um a “necessidade” febril
de contar a todos, em frenesi maníaco-depressivo, a “sua história” vivida ou
imaginada durante o período do regime dito “militar”. Deveria também eu querer
contar a minha? Não é das mais alegres...
Interessante também é que, com isso, substitui-se a pesquisa
dos fatos por uma pesquisa de depoentes aflitos por divulgar a sua versão dos
fatos. O que lhes dará importância histórica - e talvez até lhes traga um
reconhecimento internacional. E, com isso, obtém-se não apenas um disse-que-disse
festivo como o que se faz em uma feijoada de bairro, mas também uma
pseudo-história do País, uma colcha colorida que nos deverá cobrir por
completo, montada por justaposição, com o acréscimo lateral de retalhos
desalinhavados e desarticulados, de cores destoantes, bordados com traições,
ódios, ressentimentos, desconfianças, arrependimentos, emoções estritamente
individuais, particulares. Opiniões. Os fatos reais simplesmente desaparecem.
Desaparecem, portanto, as razões de fato. Portanto desaparece também a
necessidade de discernimento e desaparecem as relações entre causas e
conseqüências. Desaparece o que poderia costurar esses retalhos todos e, assim,
se essa colcha que nos cobre for puxada por qualquer de suas pontas, ela se
desmontará. Por isso, ninguém se atreve a tocar nela.
Foi interessante ler, há uns dois dias, no “depoimento” de
um ex-Embaixador e ex-Ministro da Fazenda que nos conta a “sua” particular
“história de 1964”, que “os americanos de então não se pareciam aos trogloditas
da era Reagan ou de Bush filho. Remanescentes da Presidência Kennedy, crentes
na Aliança para o Progresso, partilhavam com Johnson a fé no ativismo social
das leis contra a segregação, dos programas de saúde e assistência aos pobres
da ‘Great Society’. Mas [e o grifo aqui é meu] eram soldados da Guerra Fria,
dispostos a pagar, nas fatídicas palavras de Kennedy, qualquer preço e
confrontar qualquer adversário para assegurar a liberdade.” [1]
Esse “mas” será a chave da compreensão do discurso. De que
nos fala o sr. Rubens Ricúpero? Estará ele nos informando a respeito da
psicanálise íntima do estranho ser norte-americano ou nos estará falando de
razões de Estado - as mesmas razões que justificariam o ofício do Diplomata e a
função do Ministro? Em que pensava ou em que achava e ainda acha que deveria
pensar o sr. Rubens Ricúpero, para quem a coincidência entre a Guerra Fria e os
acontecimentos em 1964 no Brasil teria sido apenas “fatalidade”, quando, por
exemplo, “era conselheiro da embaixada do Brasil em Washington (EUA)”?
Se essa coincidência foi uma “fatalidade” é que não se deveu
a causas políticas. Foi uma... “fatalidade”... Deveu-se, então, a alguns
desarranjos no humor da Natureza, por certo... E não terão, tampouco, existido
causas políticas, em que o poder e as liberdades estivessem em jogo em nosso
País, para que se desse “a polarização e a radicalização da sociedade
brasileira” – que não terão sido provocadas, segundo suas próprias palavras,
pelos “americanos” (e “americanos” são “eles”, nós não somos americanos... Que
seríamos, então?).
E o discurso prossegue: em 1964, “com o acirramento do
conflito ideológico mundial [,] um fenômeno nacional” nos fez “perder 20 anos
de democracia”.
Pensemos um pouco: se não houvesse a Guerra Fria e se nada a
ela se vinculasse, que extraordinário fenômeno nacional teria ocorrido em 1964?
Por que ocorreria? E, tendo ocorrido, por que a sociedade brasileira se
dividiu? Pelas boas? Com o resultado dessa divisão que degenerou em um
enfrentamento – ou seja, em um conflito armado entre inimigos, raios!, mesmo
que ele não se tenha alastrado por toda a sociedade – com a vitória de quem
aparentemente o venceu teríamos perdido, de fato, 20 anos de democracia? Apenas
20? Aqueles tais 20 que não foram bem 20, em que as eleições para Presidente da
República eram indiretas e as demais instituições todas seguiam funcionando?
Perdemos porque a esquerda que foi contida não era esquerda, era o Bem, que
combatia o Mal que os “americanos” representavam? Ou o que já perdemos são 30
anos – exatamente aqueles 30 que vieram após 1985, quando a dinastia da então
oposição voltou ao trono? Se tanto nos amávamos, por que a divina esquerda, que
se abancou, “soberana”, no poder há 30 longuíssimos anos, ainda nenhum – e eu disse
nenhum! – de nossos problemas estruturais resolveu, dedicando-se apenas a
destruir o que foi feito, a impedir soluções eventualmente aventadas durante o
regime dito “militar”, a manter e cultivar problemas que apenas se agravam
sobre os quais outros mais se acumulam? Nossas instituições hoje funcionam? Às
mil maravilhas? Francamente, mesmo que não tenhamos quaisquer escrúpulos, mesmo
que o que seja bom tentemos faturar e o que seja ruim tentemos esconder, se
todas as parabólicas do universo podem, por acaso, transmitir o nosso discurso,
será interessante demonstrar um mínimo de inteligência. Ou de coerência.
Outro que nos quis “esclarecer” com sua opinião particular, e
sempre nos espanta com o que poderia ser sua “ingenuidade filosófica”, esse, ontem,
foi o sr. Jânio de Freitas. Diz ele que, para que o “brado uníssono de
‘ditadura nunca mais’” se transforme em realidade, “o ensino das escolas
militares precisaria passar por reformulação total. A do Exército, mais que
todas. Nas escolas militares brasileiras não se ensinam apenas as matérias
técnicas e acadêmicas apropriadas para os diferentes ramos da carreira militar.
Muito acima desse ensino, as escolas militares ocupam-se de forjar
mentalidades. ... As escolas militares não preparam militares para a
democracia.” [2]
Bem, se fosse uníssono esse brado, Nelson Rodrigues, gato
escaldado e ressabiado, haveria de nos dizer o puséssemos de molho. Não é
uníssono porque há muitos que desejam exatamente uma ditadura, apesar de que
“não aquela”. Quais seriam, porém, na imaginação e nos versos do sr. Jânio de
Freitas, as finalidades do ensino de matérias apropriadas aos diferentes ramos
da carreira militar? As Escolas militares deveriam preparar seus alunos para
quê? Para que serviria a carreira militar e por que teria essa carreira tantos
ramos? Se as Escolas militares, que militares são, ensinam matérias técnicas e
acadêmicas apropriadas para os diferentes ramos da carreira militar, elas não
mais as deveriam ensinar? Deveriam concorrer com as Faculdades de Serviço
Social? Que mentalidades deveriam se preocupar com forjar? Mentalidades
assistencialistas? Devemos manter Escolas militares por quê? Para que devemos
tolerar – querer nunca! - que haja Oficiais militares entre nós? Até quando?
E nosso jornalista acrescentará mais uma condição para o
sucesso do processo “democrático” que deve se antecipar em “uníssono”: a de
“que se propague a noção de soberania, tão escassa nos níveis socioeconômicos
que influenciam a condução do país.” Isso porque, diz ele, citando o artigo de
Ricúpero, “no governo Castello Branco, os ‘reformistas’ conduzidos por Roberto
Campos sujeitavam aos americanos [sic] até a revisão do currículo escolar. Se a
imaginação conseguir projetar a mesma conduta para o sistema financeiro privado,
por exemplo, pode-se ter uma ideia dos obstáculos que a construção do
desenvolvimento brasileiro enfrenta.”
Se, para resolver nossos assuntos internos (e externos),
buscamos, até hoje, exemplos no exterior e os conselhos dos considerados muito
sábios técnicos estrangeiros, sejam eles do Leste, do Oeste, do Norte ou do
Sul, é porque nos julgamos e nos mostramos, aos demais e a nós mesmos,
absolutamente incompetentes e incapazes de equacioná-los e resolvê-los por
nossa própria conta, nosso próprio risco, nossas próprias iniciativa e
inteligência. Nenhuma outra razão o justificaria. Não haverá qualquer receita
pronta estrangeira que seja menos danosa ou seja mais adequada a ser adotada em
nosso País para educar a nossa gente. Todas elas carregarão “soluções” de
acordo com a visão e o interesse, com as “verdades” do estrangeiro, e impedirão
que se forme qualquer boa visão nossa a respeito de nós mesmos. Conclusão
elementar, esta, que decorre de elementares noções de divisão de poderes no
mundo e de geopolítica. Mas não será necessário que sejamos muito estudiosos e
nos debrucemos noite adentro sobre documentos abertos ou sigilosos - sejamos
apenas um pouco curiosos e um pouco conseqüentes, pelo menos: nossas Escolas,
hoje, depois de tantas reformas, são “nossas”? Apresentando o resultado que nos
apresentam, elas estão de acordo com nossas necessidades? Ou são fruto da
inspiração de organizações internacionais e de acordos interestatais, tais como
os celebrados no âmbito do Mercosul, que interferem em nossa legislação, em
nossos objetivos e em nossa mentalidade?
Mas fé é fé. Sabemos disso. E o sr. Jânio de Freitas, ao que
tudo indica, quer que creiamos nele e que creiamos em que ele crê firmemente em
que o capitalismo é coisa de gringo, assim como os filmes de faroeste, apesar
de que a conduta do “sistema financeiro privado” possa ser espontaneamente
nacional. Complicado, isso. E quer que creiamos em que ele crê em que soberania
é assunto que se resolve com aguda esgrima verbal entre canapés de caviar e uma
taça de poire ou de champanhe e/ou alguns palavrões e algumas anedotas entre
pastéis de queijo e caldo de cana.
Conforme ele mesmo proverbia, “o certo é que a história não
faz gentilezas”. Sabemos disso, também. Aprendemos não nos livros, mas na
própria carne, dia após dia. Mas, também ao que tudo indica, tanto os militares
quanto os diplomatas brasileiros, que há alguns anos já gozam em sala de aula
de um excesso de “filosofia” de quintal e mais ainda lhes querem fornecer,
muito logo não mais atentarão a esse provérbio ou o porão seriamente em dúvida.
E não será deles a culpa...
Não. E nem o sr. Jânio de Freitas nem o sr. Rubens Ricúpero
é um ignorante. Nem um nem outro é burro. Muito menos algum deles é ingênuo.
Eles, como muitos outros, do alto de suas torres de marfim, citando-se uns aos
outros, apenas se consideram merecedores do exclusivo direito de manter
convicções “uniformes, planas, infensas à reflexão, e, por aí já está claro,
ideológica e politicamente direcionadas”. E de tentar nos convencer com os
argumentos de seus “depoimentos”. Ou tentar nos obrigar a aceitá-los como
sacrossantos, calando a “heresia” de seus adversários.
Ou seja, eles apenas nos consideram todos burros.
Estupidamente burros. E talvez o sejamos, de fato. Porque só uma burrice que
chegue às raias da insanidade mental explicará por que nos mantemos impávidos,
desfrutando de, “há tantos anos, tão igual solidariedade e defesa dos atos”
dessa esquerda chinfrim, sub-literária, mal intencionada, que se impôs nas
Escolas e no governo de nosso País em nome das “liberdades”, em atos que “para
a lei e para a democracia, são criminosos, muitos de crimes hediondos e de
crimes contra a humanidade.” Tal como, condenando e destruindo obras concluídas
ou fazendo empacar os projetos iniciados durante o governo dito “militar”,
valer-se da fome, da sede, do isolamento em locais insalubres, da miséria, da
ignorância e das eternas expectativas da população, distribuindo esmolas,
promessas e pacotes de expediente como medidas de segurança, para inchar as
urnas eleitorais de votos em seu próprio benefício, por exemplo.
Talvez, em 1964, os norte-americanos tivessem aqui tentado,
sim, como afirma o sr. Rubens Ricúpero, “reconstruir um país desde o zero”. Se
tentaram, não deu certo. Mesmo porque seria muito difícil ter dado certo,
estando o nosso País, como dizem que estava, “nas mãos dos militares”
brasileiros, que conheciam e respeitavam a nossa História. A intenção hoje, no
entanto, seja lá de quem for, talvez seja destruí-lo até o nada. Pelo menos é o
que tudo nos indica. Quem se dispõe a defendê-lo? Quem se dispõe a nos
defender?
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