Olavo de Carvalho é filósofo, escritor e jornalista e
atualmente escreve para o jornal Diário do Comércio da Associação Comercial de
São Paulo. É autor de vários livros, incluindo O Jardim das Aflições, O Imbecil
Coletivo, O Futuro do Pensamento Brasileiro, entre outros. Também é o fundador
do renomado Seminário de Filosofia.
Islamidades: Hoje um dos temas mais debatidos nos meios
conservadores é a islamização da Europa. Quase sempre esta discussão é
acompanhada de uma multiplicidade de posições ideológicas, desde neoconservadores
até eurasianos. O fato incontestável é que a enfermidade espiritual do Velho
Continente abriu as portas para a entrada do islamismo como o substituto de um
cristianismo "caduco", incapaz de se apresentar de modo convincente.
O surgimento de uma elite islâmica europeia parece ser a concretização daquilo
que já estava contido nos escritos de Guénon e Schuon décadas passadas. Até que
ponto este processo de islamização é profundo e irreversível?
Olavo de Carvalho: A penetração do Islam no Ocidente não
começou com a imigração em massa, nem com o terrorismo, nem com a espetacular
agitação política que se viu nas últimas décadas. Ela remonta à ação discreta
de René Guénon, iniciada na segunda década do século XX e dirigida a uma elite
intelectual altamente capacitada, bem longe dos olhos da mídia, dos “analistas
políticos” e da maioria dos orientalistas acadêmicos. Quando Frithjof Schuon
fundou nos anos 50 a tariqa que Guénon considerou o primeiro resultado
significativo do seu trabalho, ela já atraiu intelectuais de primeiríssimo
plano, cuja ação permaneceu discreta pelo menos até a década de 90. Foram
setenta anos de conquista dos corações e mentes nas altas esferas intelectuais,
políticas e financeiras.
Sem isso, a estratégia da ocupação por imigração jamais
poderia ter sido levada à prática. Foi preciso, primeiro, minar a resistência
nas altas esferas. O exemplo mais característico é o príncipe Charles da
Inglaterra, que por intermédio de Martin Lings se tornou um discípulo de Schuon
pelo menos desde a década de 80 e viria a aparecer, já no nosso século, como o
maior protetor dos invasores islâmicos no seu país.
Todo esse processo passou despercebido aos analistas
políticos e cientistas sociais, que até então desconheciam praticamente tudo do
Islam, mas a promessa de Schuon ao voltar da Argélia e instalar sua tariqa em
Lausanne foi bem explícita: “Vou islamizar a Europa”. Disse e fez. Perto dessa
ação em profundidade, as ações espetaculares do aiatolá Khomeini e dos
terroristas não são senão a espuma trazida pela maré. Se você me pergunta se é
possível reverter o processo, respondo que sim, mas é preciso agir desde a
camada profunda onde o processo começou.
Islamidades: O islamismo seria capaz de proteger-se do
secularismo ocidental? Desde o séc. XIX o mundo islâmico está lutando para se
adaptar ao novo contexto mundial. A ascensão do socialismo e nacionalismo
árabes, como resposta de sabor europeu aos problemas concretos do Oriente
Médio, mostrou-se um completo fracasso. O surgimento de grupos de libertação,
como a Irmandade Muçulmana e a Revolução Islâmica no Irã, criavam mais
problemas do que soluções. Ademais, desde a consolidação do wahabismo na Arábia
Saudita, o “salafismo” se tornou em propulsor de anacronismos em todo o mundo
islâmico. Para agravar ainda mais o cenário, o liberalismo ocidental surge como
uma proposta sedutora de progresso, e cobrando a secularização da sociedade.
Com este quadro formado, e analisando a “Primavera Árabe” e os seus frutos,
como entender o complexo movimento de (re)conhecimento e adaptação das nações
islâmicas – para não dizer Ummah – ao mundo moderno?
Olavo de Carvalho: As relações entre o Islam e o secularismo
ocidental são bastante ambíguas. Por um lado, foi o secularismo que debilitou a
herança cristã da civilização européia, criando um vácuo que o islamismo se
oferece gentilmente para preencher. Por outro lado, a ponta de lança mais
avançada do secularismo foi precisamente o movimento comunista, que armou,
treinou e dirigiu não só os grupos terroristas islâmicos, desde muitas décadas
atrás, mas também vários líderes políticos bem conhecidos, como Gamal Abdel
Nasser e Yasser Arafat. Sobre esses dois aspectos, o secularismo embora oposto,
em aparência, à ideologia islâmica, foi o grande suporte da sua penetração no
ocidente. Existe, embora mais discreto e menos significativo historicamente, o
reverso da medalha. Em muitos países islâmicos, a começar pelo próprio Irã, os
atrativos da moderna vida ocidental, com a promessa da liberdade sexual e a
sedução das drogas, inspiram alguma revolta entre os jovens, criando uma
instabilidade que os governos islâmicos têm conseguido eliminar na base da
repressão e da violência. As análises usuais não levam em conta essas
ambiguidades, preferindo insistir na visão estereotipada de uma oposição
esquemática entre “modernidade” e “fundamentalismo”. A questão complica-se, no entanto, um pouco
mais, porque justamente essa oposição, assim concebida, é usada pelos
secularistas ocidentais para combater não o Islam, mas o que resta de
cristianismo na sociedade européia e americana, de modo que a própria retórica
modernista que verbera o “atraso” e o “fanatismo” da civilização islâmica
debilita ainda mais a resistência aos invasores.
Islamidades: A mística é mais eloquente do que séculos de
debates teológicos. No contexto islâmico isto é ainda mais verdadeiro quando
levamos em consideração o intercâmbio entre xiitas e sunitas no sufismo. Por
mais que complexas concepções doutrinais os separem, como a noção xiita da
função esotérica do imamato, no campo místico o diálogo é eloquente e muitas
vezes supera as distinções. Como defendido
por Seyyed Hossein Nasr, “somente o
sufismo pode alcançar esta Unidade que abraça estas duas facetas do Islam e
consegue transcender as diferenças exteriores”.
A difusão da mística islâmica, ou ao menos a formação de uma elite
espiritual sob a sua égide, seria fator fundamental na coesão interna do
islamismo?
Olavo de Carvalho: O agressivo globalismo islâmico que
aspira ao Califado universal nasce da confluência de duas correntes
aparentemente incompatíveis. Por um lado, é evidente que o esoterismo “sufi”
representa, ao menos virtualmente, a grande força de unificação espiritual das
inúmeras correntes religiosas e ideológicas que, numa confusão dos diabos,
pululam no Islam. Nesse sentido, ele é de certo modo o cérebro por trás de todo
expansionismo islâmico no que ele tem de mais ligado à nostalgia das glórias
passadas e ao senso messiânico que inspirou o Islam desde o começo. No século
XX a influencia soviética penetrou profundamente no meio islâmico, incentivando
a transformação do revanchismo anti-ocidental numa ideologia revolucionária
fortalecida pela “teologia da libertação” islâmica criada por Said Qutub nos
anos 30. É quase inconcebível para o observador ocidental usual atinar com uma
aliança entre tradições espirituais esotéricas e o mais brutal movimento
revolucionário anti-religioso de todos os tempos, mas ela aconteceu. Até hoje
existe, ainda que bem controlada, essa tensão dentro do mundo islâmico, na
medida em que o presente governo russo, composto quase que inteiramente de
membros da mesma KGB que orquestrou a politização do islamismo seis ou sete
décadas atrás, busca hoje integrar as forças islâmicas no seu projeto maior, o
Império Eurasiano. Há toda uma zona de mescla, de competição e de colaboração
entre “árabes” e “russos”, que até hoje não foi adequadamente mapeada pelos
estudiosos. Quem vai usar o outro e quem vai ser usado é uma questão que só as
próximas décadas decidirão.
Islamidades: Autores como René Guénon, a.k.a. Shaykh 'Abd al-Wahid Yahya, Frithjof Schuon,
a.k.a. Shaykh 'Isa Nur al-Din Ahmad, e Martin Lings, a.k.a. Abu Bakr Siraj
Ad-Din, são alguns nomes da filosofia perene, todos convertidos ao
islamismo. Dentro do caldeirão da
“unidade transcendente das religiões” a fé islâmica se sobressai como a
plenitude das religiões tradicionais. Contudo, o que parecia ser apenas uma
dinâmica própria de grupos esotéricos periféricos, tem se mostrado muito mais
estruturada do pondo de vista prático, seja através do incremento de obras
publicadas, como através da disseminação do esoterismo, principalmente nos EUA
e Europa. Ademais, o perenialismo também influenciou, em aspectos que parecem
obscuros, o modo como o ecumenismo moderno foi concebido. Os pressupostos metafísicos comuns nas
crenças tradicionais possibilitariam, aos olhos da Escola Perene, um
“ecumenismo esotérico”, utilizando o termo consagrado por Schuon em seu livro
“Christianity Islam: Perspectives On Esoteric Ecumenism”. Até onde chega a
influência do perenialismo na cosmovisão religiosa moderna e na vida
intelectual ocidental?
Olavo de Carvalho: O projeto de Guénon e Schuon parece
fundar-se no reconhecimento da igual legitimidade de todas as tradições
religiosas, porém, na medida em que toma o esoterismo islâmico como a
modalidade mais alta e vigorosa de espiritualidade nas condições da época
presente, ele corresponde, na prática, a colocar todas as religiões do mundo
sobre a orientação discreta de uma elite espiritual islamica. Levei décadas
para entender uma coisa tão óbvia. Quando Guénon, nos anos 30, disse que o
Ocidente só tinha três saídas – a barbárie, a islamização ou a restauração da
Igreja Católica, ele deixou bem claro que esta última alternativa deve ser
conduzida sob a direção de autoridades espirituais islâmicas. A única
diferença, portanto, entre as duas ultimas alternativas é a que existe entre
islamizar a civilização ocidental de maneira ostensiva ou camuflada. A prática
mostrou que essas duas alternativas não se excluem absolutamente. Um detalhe
interessante é que toda a retórica, tanto guénoniana quanto “perenialista” (
essas duas coisas não são exatamente a mesma) se baseia na afirmação de que o
esoterismo foi totalmente perdido de vista no Ocidente pelo menos desde a
Renascença, reduzindo-se a religião crista, na modernidade, ao mais raso
exoterismo. Daí concluíam esses doutrinários que uma injeção de sufismo era
necessária para salvar o Ocidente de si mesmo e reatar os elos da civilização
com as suas raízes cristãs mais remotas. Acontece que, no Ocidente, o
esoterismo só foi perdido na esfera da cultura acadêmica, mas, fora dela,
continuou pujante e vigoroso, inspirando praticamente todos os grandes
escritores e poetas do mundo Ocidental. Também é fato que a mais alta
“realização metafísica” cuja possibilidade o sufismo de Guénon e Schuon
prometia trazer de volta a uma civilização extraviada, jamais foi perdida de
vista na tradição católica, como se vê, claramente, pelos livros do padre Juan
Gonzalez Arintero, La Evolución Mistica e Cuestiones Misticas. Em suma, o que
essa gente prometia era nos dar algo que já tínhamos, com o agravante de que a
doação vinha acompanhada da transferência da autoridade da Igreja Católica para
as autoridades espirituais islâmicas que a dirigiriam e orientariam desde
longe.