Por José Maria Silva
Carlos Marighella: padecendo torturas bárbaras,
como muitas
outras vítimas de ditaduras antes de 1964
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Mas não se deve combater o mito guerrilheiro com outro mito
— o do Exército salvador da pátria, que, a cada ameaça comunista, é chamado a
salvar a democracia a golpes de Estado.
E assim foi preso Carlos Marighella, que ficaria
internacionalmente famoso como autor do “Manual do Guerrilheiro Urbano”: em vez
de encontrar Taciano Fernandes, companheiro de subversão, preso às duas e meia
da madrugada, seu infeliz encontro em Santa Teresa, pouco depois das seis horas
da manhã, foi com um “magote de policiais que voaram em sua direção como a
tarrafa sobre o cardume”, na descrição de seu biógrafo Mário Magalhães. Foi
jogado num carro, já apanhando, e levado para a Polícia Central do Rio de
Janeiro, onde foi recebido com murros no rosto, no peito e nas costas, em meio
a impropérios. Ao ser entregue ao chefe de Segurança Social, Serafim Braga,
recebeu mais uma rodada de golpes: socos no estômago e pancadas de canos de
borracha, em meio a perguntas para que delatasse seus companheiros. Não
satisfeitos, seus algozes passaram a açoitá-lo nos rins, nas costas e nas
nádegas.
“Cinco sessões de espancamentos depois”, conta Mário
Magalhães, “encaminharam o comunista renitente para uma sala exclusiva para
tortura”, onde nada lhe foi dado para comer, até que, no início da tarde, o
chefe de Segurança Política, Antônio Emílio Romano, “comandou outra sova
concentrada na cabeça: o sangue escorreu pelo nariz e Marighella desmaiou”.
Depois de um curto descanso da tortura, enquanto policiais vasculhavam a casa
onde morava de aluguel, Marighella voltou a sofrer novo corretivo. Depois de 12
horas dessa tortura inicial na Central de Polícia, seus captores desistiram de
arrancar-lhe qualquer informação relevante e ele foi levado para o terror de
todos os subversivos — o quartel do Morro de Santo Antônio, espécie de sétimo
círculo do Inferno de Dante.
Tão logo foi jogado para fora do carro no pátio mal
iluminado, Marighella foi cercado por investigadores com seus cigarros acesos.
Como demônios à roda, envoltos na fumaça do tabaco, que Marighella detestava,
recomeçou a tortura: murros, pontapés e a brasa dos cigarros queimando a pele.
Para completar, um alfinete de gravata foi enfiado em seus dedos, debaixo das
unhas, uma por uma, metodicamente, até chegar à última, deixando suas mãos
completamente ensanguentadas e inchadas. Como se não bastasse, os torturadores
agarraram seus testículos e, a cada pergunta não respondida, apertavam com mais
força. A dor se tornou insuportável e Marighella desmaiou. Já era madrugada de
sábado e estava sem comer desde a manhã de sexta-feira. Mesmo assim, a manhã o
aguardou com novas mudanças de cárcere e, em cada uma delas, mais
espancamentos: murros, pontapés, cassetes, canos de borracha. “A dor lancinante
de uma hérnia, castigada pelos golpes, quase o enlouqueceu”, conta Mário
Magalhães.
Carlos Marighella foi apenas um dos muitos prisioneiros
políticos destroçados pela tortura, como mostra seu biógrafo ao descrever o
martírio de outros torturados: “As paredes do quartel da Polícia Especial
haviam ensurdecido com os berros desesperados de Arthur Ewert, cuja loucura
provocada pela truculência já se manifestava”. Para tentar salvar o alemão
Ewert das torturas, o advogado Heráclito Sobral Pinto invocou a lei de proteção
aos animais, mas pouco adiantou. O preso político ficou confinado durante dez
anos nas prisões brasileiras e, quando enfim foi libertado, já estava
irremediavelmente louco e terminou seus dias num hospital psiquiátrico da Alemanha,
seu país natal. Já o norte-americano Victor Allen Baron, operador de rádio que
tinha sido enviado pelo Komintern para fazer a Revolução, foi poupado da
loucura: depois de ter sido destroçado pelos torturadores, foi atirado do
terceiro andar do presídio onde estava sendo interrogado, numa simulação de
suicídio.
O nazismo verde-oliva dos “Comitês de Vingança”
Mas engana-se quem pensa que essas torturas bárbaras tiveram
lugar após o dia 31 de março de 1964, que inaugurou, há exatos 50 anos, o
regime militar no Brasil, reduzido por historiadores e formadores de opinião à
pecha de “ditadura militar”; na verdade, essas torturas sofridas por Carlos
Marighella e seus camaradas de comunismo ocorreram não em 1964, mas entre o
final de 1935 e o início de 1936, durante o governo de Getúlio Vargas — o
caudilho respeitado por Lula e pelo PT, cuja ditadura sanguinária passou para
os livros de história como “Revolução de 30”. Corretamente, por sinal, pois
Vargas foi muito mais do que um mero ditador — com truculência e paternalismo,
ele consolidou a República, que não passava, até então, de uma infeliz
quartelada. De modo análogo, o regime militar de 1964 criou o Brasil moderno,
urbano, expandindo a educação básica, o ensino universitário e lançando as
bases da pesquisa científica no Brasil.
Por isso, as “Comissões da Verdade” que se espalham pelo
País afora não passam de Comitês de Vingança, ocupados em distorcer a história
para engendrar, dentro dela, uma espécie de nazismo verde-oliva, representado
pelos militares que salvaram o Brasil do terrorismo crônico ou da guerra civil
em 1964. As novas gerações foram e continuam sendo forçadas a pensar que os
governos militares pós-64 são a síntese de tudo de ruim que aconteceu na
história do Brasil e que nada houve pior do que isso. A se crer no tom
horrorizado com que os formadores de opinião repetem a expressão “ditadura
militar”, tem-se a impressão de que nem mesmo a escravidão se igualou em
crueldade ao regime instaurado no País em 64. O regime militar tornou-se uma espécie
de marco zero da iniquidade nacional, projetando sua sombra devastadora no
passado e no futuro, como se fosse responsável retroativamente pelo extermínio
dos índios pelos bandeirantes, a escravidão do negro pelo português e até,
projetivamente, pelos escândalos de corrupção que continuam assolando a
República.
Prova disso é que a ditadura civil de Getúlio Vargas tem um
tratamento muito diferente nos livros de história e nas páginas dos jornais.
Enquanto o golpe de Estado de 24 de outubro de 1930, que depôs o presidente
Washington Luís, é retratado como “Revolução de 30”, o golpe de Estado de 31 de
março de 1964, que depôs o presidente João Goulart, é reduzido a epítetos como
“Ditadura Militar” e “Anos de Chumbo”. Mas quem entregou Olga Benário, grávida,
para as fornalhas nazistas não foram os militares de 1964, mas o ditador
Getúlio Vargas, quando combatia a Intentona Comunista de 1935. O que não
impediu Luiz Carlos Prestes, o santo comunista de Jorge Amado, de inocentar
Getúlio Vargas com seu apoio político, pisoteando e cuspindo na memória da mãe
de sua filha Anita Leocádia, hoje historiadora, que, por sorte, escapou da
morte.
Se tucanos e pefelistas não padecessem de ingenuidade
ideológica, o escopo investigativo da Comissão da Verdade teria retroagido a
1930 e, então, o Brasil saberia como é gélido o coração da ideologia de
esquerda, que ama a abstração da humanidade com tanto fervor que não hesita em
sacrificar o ser humano concreto que não se encaixe nesse ideal de perfeição.
Apesar das torturas que seus camaradas padeceram nas garras da polícia do
Estado Novo de Vargas (da qual ele próprio fora poupado, por ser militar) e da
prisão da judia Olga Benário, sua mulher, entregue aos nazistas aos sete meses
de gravidez, Luís Carlos Prestes perdoou Vargas em nome do ideal comunista
desossado de gente, por isso sempre pronto a saltar por cima de cadáveres. Em
23 de maio de 1945, num comício no Estádio do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro,
depois de nove anos preso, Prestes defendeu a união nacional em torno do
ditador Getúlio Vargas e disse que defender sua saída do poder, como pregavam
os setores democráticos, seria uma deserção e uma traição.
Dias depois, em 15 de julho de 1945, desta vez no estádio do
Pacaembu, em São Paulo, Prestes voltou a defender Vargas, seu velho algoz,
chamando de fascistas todos aqueles que criticavam o ditador e defendiam o fim
de seu regime para que fosse eleita democraticamente uma Assembleia Nacional
Constituinte. Prestes, ao contrário, queria uma Constituinte com Vargas no
poder, algo como uma Constituição de 88 tutelada por um presidente militar. O
entusiasmo com que defendia o caudilho gaúcho dividiu o próprio Partido
Comunista. Alguns de seus camaradas não conseguiam entender como um homem como
Prestes, que tinha sido preso por Getúlio e vira sua mulher judia ser entregue
grávida à Alemanha de Hitler, sucumbindo ao nazismo, podia, naquele momento,
transformar-se em arauto do ditador, tentando evitar a derrocada de seu regime,
a ponto de apoiar uma Constituinte tutelada.
Mas não foi apenas a memória de Olga Benário que a ideologia
comunista matou com a sua indiferença pela vida humana. Antes de ser presa, a
cúpula do Partido Comunista (PC) executou Elza Fernandes, uma pobre moça do
interior que, aos 16 anos, se tornara amante de Miranda, então secretário-geral
do partido. Desconfiado de que ela estava sendo usada pela polícia para caçar e
prender seus camaradas de partido, Luiz Carlos Prestes lavrou a sentença de
morte da Garota, como Elza era conhecida. Como seus camaradas hesitassem em
executar a sentença, Prestes escreveu-lhes um duro bilhete, chamando-os de
medrosos: “Fui dolorosamente surpreendido pela falta de resolução e vacilação
de vocês. Assim não se pode dirigir o Partido do Proletariado, da classe
revolucionária. (...) Por que modificar a decisão a respeito da ‘garota’? Que
tem a ver uma coisa com a outra? (...) Com plena consciência de minha
responsabilidade, desde os primeiros instantes tenho dado a vocês minha opinião
quanto ao que fazer com ela. Em minha carta de 16, sou categórico e nada mais
tenho a acrescentar”.
Diante da determinação do líder maior do Partido Comunista,
Elza foi transferida para uma casa num local ermo de Deodoro, subúrbio do Rio
de Janeiro, e a sentença foi executada por quatro membros do partido. Depois
de, inocentemente, fazer café para os companheiros, ela foi estrangulada com
uma corda e seu corpo foi quebrado ao meio, até que os pés se juntassem ao
pescoço, para que coubesse dentro de um saco e pudesse ser enterrada no quintal
da casa. Estava cumprida a vontade de Luiz Carlos Prestes, o Cavalheiro da
Esperança, um dos heróis da Comissão da Verdade. Em seu favor, não se pode
alegar nem mesmo o medo da tortura ou da morte, já que era um soldado tarimbado
e, como se veria depois, foi preso com toda a dignidade de um comandante, sem
passar pelas agruras dos companheiros de infortúnio.
O genocídio comunista no Araguaia
No caso dos demais comunistas, candidatos a passar pelo que
Carlos Marighella passou nos porões da ditadura Vargas, é até compreensível que
eles quisessem afastar todas as possíveis causas de sua prisão. E se Elza
Fernandes, com sua ingenuidade facilmente manipulável pela polícia, era uma
dessas causas, quem pode acusá-los por tentar salvar a própria pele esfolando a
pele de terceiros? Confesso que até entendo o desespero dos subversivos
políticos que, perseguidos pela polícia e temendo a tortura e a morte,
entregavam um companheiro ou até mesmo o eliminavam, numa tentativa desesperada
de sobrevivência. O que não se pode admitir é que, mesmo depois desse tipo de
experiência, várias vezes repetida na história, a esquerda jamais aprenda com
seus próprios erros e continue glorificando a luta armada, como se fosse
possível construir uma sociedade perfeita regada com o sangue de inocentes.
Com base nessa arrogante cegueira ideológica, que
desconsidera as fragilidades do homem concreto, a esquerda cria mitos — como o
nazismo verde-oliva que vai sendo imposto pelas Comissões da Verdade. Ao mesmo
tempo, como contraponto a essa crueldade nazista dos militares, engendra-se,
também falsamente, o impoluto idealismo da geração de guerrilheiros que
combateram o regime, hoje transformados em verdadeiros santos nas páginas dos
jornais e nos livros de história. Já escrevi e repito: o regime militar de 64 é
a muleta moral dos intelectuais de esquerda — eles o acusam de todos os crimes
para melhor acobertarem os próprios. Começando pela guerrilha urbana e rural, o
crack da época, que aliciava adolescentes e jovens doidivanas para uma luta
obviamente suicida, cujos mortos deveriam pesar não apenas nos ombros de seus
torturadores e assassinos, mas também na consciência dos velhos dirigentes
comunistas do PCdoB — diretamente responsáveis pelos mortos na Guerrilha do
Araguaia.
Só mesmo a insanidade ideológica para levar um grupo de
intelectuais a acreditar que seria possível fazer a revolução comunista num
País de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e 70 milhões de habitantes a
partir do voluntarismo de 98 guerrilheiros, praticamente sem armas, perdidos no
meio da selva, na maioria estudantes universitários urbanos, muitos dos quais
nunca tinham tomado nem banho frio na vida. O modelo era a Grande Marcha de Mao
Tsé-Tung. Mas o Oriente é outro mundo e a China faz fronteira com a Rússia, o
que facilitava o apoio de Stálin à guerrilha maoísta. Como contam Jon Holliday
e Jung Chang na biografia “Mao: A História Desconhecida”, a União Soviética
tinha homens em todas as principais cidades chinesas e fornecia armas, remédios
e informações essenciais para a sobrevivência do Partido Comunista Chinês.
O perigoso maniqueísmo ideológico
Com base nesse aparato bélico e de espionagem, os soviéticos
conseguiam sublevar camponeses em diversas províncias chinesas e, antes mesmo
de Mao iniciar a Grande Marcha, os comunistas já contavam com um exército de 20
mil homens na China, tirados do exército nacionalista de Chiang Kai-shek. Algo
muito diferente do Brasil, um país quase tão grande quanto a China, com uma
cultura nada guerreira e, ainda por cima, na área de influência dos Estados
Unidos, que, obviamente, jamais aceitariam de braços cruzados a transformação
do maior país da América Latina numa nação comunista. Para os Estados Unidos,
uma coisa era permitir que uma pequena ilha como Cuba se tornasse uma ditadura
comunista; outra bem diferente era aceitar que o mesmo ocorresse no Brasil. Se
nem hoje a Rússia aceita que a Crimeia deixe sua área de influência, como
imaginar que o Brasil se tornaria satélite de Moscou a partir da tresloucada
aventura dos guerrilheiros do Araguaia?
Todas as guerrilhas de sucesso no mundo, inclusive a que é
promovida pelas Farc na Colômbia, foram feitas em regiões de fronteira, de
preferência entre países rivais, permitindo que os guerrilheiros, quando
cassados pelas forças legais de seu país, pudessem se homiziar temporariamente
no país vizinho. Creio que a única guerrilha do mundo totalmente ilhada na
região central de um país, sem qualquer rota de fuga decente, foi justamente a
Guerrilha do Araguaia — o que mostra a insanidade mental e moral de seus
idealizadores. Os jovens que perderam a vida na guerrilha armada, urbana ou
rural, não eram heróis coisa nenhuma. Eram apenas lunáticos — seduzidos para a
morte pelos genocidas da própria esquerda que formularam uma luta armada sem
qualquer chance de vitória. E se o seu intento lograsse algum efeito, ele não
seria a implantação do socialismo, mas a eclosão de uma guerra civil. Ou os
empresários iriam dividir suas empresas; os proprietários rurais, suas terras;
a classe média, suas casas — tudo isso sem luta? Se a guerrilha desse certo, o
Brasil não seria uma nova potência socialista — seria uma imensa Angola de
miséria e sangue.
Não se constrói uma nação com base no maniqueísmo
ideológico, que aniquila o senso crítico e infantiliza os jovens, tornando-os
presas fáceis de qualquer demagogo de esquerda que se apresente como revisor do
passado e senhor do futuro, oferecendo a utopia da revolução como uma espécie
de errata da própria humanidade. A nação precisa ser criticamente educada para
pensar o passado sem exageros, reconhecendo os erros e acertos de cada período
histórico. É impossível, por exemplo, que, nos 21 anos que separam o golpe
militar de 1964 da eleição de um presidente civil em 1985, o Brasil tenha sido
apenas uma terra arrasada por “anos de chumbo”, como querem fazer crer os
Comitês da Vingança que se arvoram a senhores da verdade. “O regime militar
brasileiro não foi uma ditadura militar de 21 anos” — é o que afirma o
historiador Marco Antonio Villa, doutor em história pela USP e professor da
Universidade Federal de São Carlos, em seu livro “Ditadura à Brasileira”, com o
qual eu e os fatos concordamos integralmente. Até o final de 1968, antes do
AI-5, o Brasil vivia uma efervescência político-cultural mais intensa do que
hoje. Depois da Anistia, em 1979, também.
Mas não se deve combater o mito guerrilheiro com outro mito
— o do Exército salvador da pátria, que, a cada ameaça comunista, é chamado a
salvar a democracia a golpes de Estado. O Brasil vive novamente um desses
momentos cruciais de sua história, em que as instituições estão sendo
transformadas em instrumento da ideologia esquerdista — o que leva alguns
setores da sociedade, ainda que minoritários, a pedir a volta dos militares. É
suicídio. Uma nação adulta dispensa pais de farda. A República brasileira não
pode ser uma quartelada, com interregnos de democracia em meio a uma história
de arbítrios. Mas também não pode ser uma eterna utopia, em que, à custa de
construir um “outro mundo possível”, a esquerda destrua cotidianamente o
mundo real, atiçando pobres contra ricos, negros contra brancos, mulheres
contra homens, minorias contra maiorias, até que, em meio a esse caos de
conflitos forjados, tenhamos o pior dos conflitos: militares contra civis — que
é onde morre a democracia.
Fonte: Jornal Opção
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