Fernando Gabeira - O Estado de S.Paulo
Internet é isto mesmo: um território livre onde se trocam
informações, críticas e insultos. É raro uma pessoa pública nela encontrar
apenas elogios. E raro um texto sobre ela que não desperte comentários sacanas.
Wikipédias, desciclopédias, com informações truncadas, dizem o que querem e, se
as pessoas acreditassem firmemente no que leem na rede, ficariam paralisadas
caso encontrassem um personagem dos verbetes, o médico e monstro. Suas reações
seriam como as de Alec Guines no Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick: os gestos
desmentiriam as palavras, o abraço se transfiguraria num soco, e vice-versa.
Num prefácio para o livro do treinador Rômulo Noronha sugeri
a natação como uma das táticas para enfrentar comentários negativos. Você os
lê, mergulha e, nos primeiros cem metros, começa a achar que não foram tão
graves assim. Nos 400 metros, já admite que talvez possam ajudar você de alguma
forma, na autocompreensão ou na aceitação do mundo.
Algo muito grave acontece quando os ataques nascem num
computador do Palácio do Planalto, sede do governo federal. É o caso das inserções
feitas na biografia dos jornalistas Carlos Sardenberg e Miriam Leitão.
Como sempre, o governo reagiu, a princípio, dizendo que era
difícil rastrear a origem das notas, os dados foram desmanchados - a mesma
tática usada para as gravações das câmeras naquele problema de Dilma Rousseff
com uma diretora da Receita Federal. A segunda explicação também é clássica: o
Wi-Fi do Planalto é usado por visitantes, pode ter sido alguém de fora - de
preferência, da oposição.
Às vezes paro para pensar: por que o PT faz tanto mal a si
próprio? Deixo o campo estritamente moral para raciocinar apenas de uma forma
política. O caso do Santander é típico: uma nota realista sobre o comportamento
do mercado provocou uma grande reação, sua autora foi demitida e o banco, forçado
a se derreter em desculpas.
O mercado deve ser livre para fazer suas previsões. E arcar
com as consequências. O mercado tinha uma visão negativa no primeiro mandato de
Lula. E errou, pois o País iniciou um processo de crescimento.
A pressão contra o Santander, além de sugerir censura,
amplificou a análise do banco, que em outras circunstâncias ficaria restrita
aos clientes especiais. Assim mesmo, aos que se orientam politicamente por
cartas bancárias. O governo conseguiu transformar uma simples análise num
debate nacional, o que era um consenso entre analistas de mercado se tornou uma
consistente crítica à política econômica de Dilma.
A julgar pelo digitador do Palácio do Planalto, as coisas
estão pegando aí, na política econômica: os dois jornalistas atingidos são
críticos das medidas do governo com base nas evidências.
No universo político, a artilharia sempre foi comandada
pelos blogueiros mantidos por empresas do Estado. Eles cuidam de nos combater
com dinheiro público e racionalizam essa anomalia com a tese de que uma verba
muito maior é usada pelos meios de comunicação que criticam o governo.
Os intelectuais dissidentes em Cuba dão de barato que o
governo os vigia, os boicota e promove campanhas para assassinar sua reputação.
Mas é uma ditadura.
Num país democrático, essas práticas, além de condenáveis,
não são eficazes. Todo este universo de rancor acaba se voltando contra os
agressores, que, como dizem os orientais, sempre se desequilibram no ataque. Os
nove jornalistas atacados, nominalmente, por um dirigente do PT tiveram a
solidariedade internacional, uma nota de apoio da organização Repórteres sem
Fronteiras.
O PT sabe que existe um nível de rejeição ao partido nas
grandes cidades - em Vitória os petistas já não usam estrelas e bandeiras
vermelhas, talvez nem barba. O que parece não perceber é como seus movimentos
autoritários aumentam a rejeição. É como se um partido abrisse mão de seduzir e
se focasse apenas em intimidar.
Esse é um jogo muito perigoso. Em primeiro lugar, porque há
muitos homens e mulheres que não se intimidam. Em segundo, porque envenena uma atmosfera
que já é medíocre com atos de campanha sem graça, muitos bebês no colo, Dilma
comendo cachorro-quente. Come cachorro-quente, pequena. Olha que não há mais
metafísica no mundo, senão cachorro-quente.
O PT conseguiu construir uma linguagem própria. O verbete
aloprado é um descoberta para se distanciar de seus combatentes da guerra suja.
Digo com conhecimento de causa. Depois das eleições de 2006, interroguei todos
os chamados aloprados. Era estranho que aloprados tivessem coletado mais de R$
1 milhão. Mais estranha, ao longo dos interrogatórios, a recusa em responder, a
frieza matemática em usar os mecanismos legais em sua defesa. Aloprados?
Se um dia aparecer o aloprado do computador do Planalto,
observem como se esquiva, como é difícil achar nele algum traço que o defina
como aloprado, como resiste às provocações. Ele é resultado de uma cultura que
domina a política brasileira desde 1992. A constante tentativa de liquidar o
outro é uma arma típica de ditaduras. Infelizmente, para uma grande parte da
esquerda, a democracia ainda não é um valor estratégico.
Não sei qual será o resultado das eleições. Mas acho que o
PT faz tudo para merecer uma derrota, algo que lhe dê pelo menos a chance de
refletir sobre o período sombrio que acabou instalando no Brasil.
Uma força verdadeiramente democrática, à esquerda, seria boa
para o futuro.
Será que é preciso que Cuba desmorone, que a Venezuela
fracasse mais claramente, para que os petistas se convençam de que esse não é o
caminho?
Sei que assim procedendo me exponho ao Twitter de todos
vocês. Mas é preciso combater essa cultura de ressentimento e mediocridade que
leva um digitador do Palácio do Planalto a dedicar sua tarde ao ataque a
jornalistas na Wikipédia.
Não é um aloprado, mas um caso extremo e talvez cristalino:
revela, em toda a sua profundeza, o abismo em que nos lançaram.
Fonte: A Verdade Sufocada
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