Por Tiago Venson
Diz o ditado que as estradas para o inferno são pavimentadas
com boas intenções. A mensagem é que a ninguém é facultada a prerrogativa de
não observar as conseqüências de suas ações. A ninguém é dado o direito de
esconder-se por detrás de belas palavras, por mais convincentes que sejam, e
por mais que se acreditem nelas do fundo do coração.
Isso porque a fórmula para o reconhecimento do bem ou mal
não é a beleza ou fealdade do discurso, mas os resultados que decorrem daquilo
que se defende. “Pelos frutos, conhecereis a árvore”, já dizia Deus em pessoa.
Em âmbito do direito penal, são ubíquas as falas sobre o
caráter malévolo das sanções, sobre a incapacidade regenerativa do cárcere,
sobre a falência do sistema penitenciário. Essas idéias são tecidas de forma
extremamente sedutora, de modo que sua disseminação é impressionante. Claro, à
medida que se afastam de suas fontes originadoras – dos pensadores que
inicialmente formulam tais discursos –, as teses vão perdendo a elegância,
depois os contextos, a extensão e, por fim, tornam-se a mera expressão
grosseira e ultra condensada do cerne da idéia. Quem nunca ouviu que “a prisão
é uma escola para o crime”?
Essa assertiva nada mais é do que uma compactação de textos
como o seguinte, do Juiz Federal Tourinho Filho ([i]):
A mídia induz o povo a acreditar que a questão da violência
se resolve aumentando as penas e mandando o criminoso para a cadeia. Incute a
idéia de que a paz se consegue aumentando-se o número de figuras delituosas.
É preciso desmistificar a ideia de que o direito penal
(principalmente, a prisão) é a solução para a contenção da onda de
criminalidade que invade, domina e sufoca a sociedade.([ii])
Não há como negar a habilidade do autor de uma redação que,
em meia dúzia de linhas, consegue acumular a insinuação de que os discordantes
são manipulados e ingênuos, reduzir as teses possíveis a um pobre preto e
branco sem gradações intermediárias, fechar os olhos para a ausência de provas
conclusivas quanto à questão discutida para, por fim, pular qualquer liame
lógico e expor, como conclusão, em um tom impositivo, uma instrução explícita
sobre o que os leitores devem fazer.
Sob essa avalanche erística, quem se lembraria de pensar que
nunca viu, na imprensa, esse exército de jornalistas espumando em alaridos por
lei e ordem, mas que, ao contrário, a coisa mais comum do mundo são matérias,
filmes e artigos sobre o bandido “vítima da sociedade”?
Quem não gostaria de concordar com o autor para, no mesmo
ato, sentir-se alçado a uma casta superior, uma categoria de esclarecidos que
paira muito acima dos discursos midiáticos e enxerga, daquelas alturas, os
longínquos horizontes onde um céu de misericórdia se funde com um mar de
nitidez e certeza?
O apelo é reforçado devido ao fato de que tese segundo a
qual o aumento do número de prisões não resulta na redução da criminalidade não
é absurda, mas perfeitamente possível. Segundo o Conselho Nacional de Justiça,
a população carcerária aumentou 380,5% no período entre 1992 e 2012[iii] e, não
obstante, os níveis de criminalidade continuam a subir. Ou seja, houve mais
prisões e, ainda assim, mais crimes.
Além do mais, segundo o secretário-geral do mesmo órgão, a
taxa de reincidência varia entre 60% a 70% ([iv]), o que demonstra que,
realmente, no Brasil, o caráter reformador da pena é falho.
Como discordar, então, de idéias expressas pelas mais
afiadas técnicas de convencimento, e ainda corroboradas por tais números?
Para isso, é preciso examinar a questão mais a fundo e ver
que, entre o branco e o preto, há todo um espectro de cores.
Com base nos dados expostos, a conclusão inafastável é que é
inviável asseverar o potencial de o aumento quantitativo de prisões reduzir a
criminalidade. É possível que, por mais que se prendam, os índices de
cometimento de delitos continuem a aumentar. Basta, para isso, que as
motivações para a criminalidade sejam externas e alheias aos presídios ([v]).
Mais difícil, entretanto, é sustentar-se que a criminalidade
aumenta devido ao incremento do número de prisões. Embora alguns defendam que o
criminoso sai da cela pior do que entrou, não parece plausível afirmar que foi
o grande número de segregações efetivadas que o fez optar pelo mundo do crime e
ser preso pela primeira vez.
Porém, se ninguém sabe se o aumento da punição é capaz de
reduzir os crimes, e se poucos afirmariam que os crimes ocorrem porque os
criminosos são presos, todo mundo sabe que a impunidade é um estímulo
fortíssimo ao cometimento deles ([vi]). Essa certeza é tão antiga quanto o anel
de Giges.
E é exatamente na conclusão mais revestida de certeza que o
Brasil mais falha.
Em relação aos homicídios, apenas 8% são punidos ([vii]).
Dos 134.898 inquéritos por assassinatos iniciados até 31 de dezembro de 2007,
apenas 31,94% foram concluídos até 2012 ([viii]) ([ix]).
Esses dados referem-se a crimes de homicídio, chocantes por
natureza. Qual não será a proporção de prisões em outros, menos explícitos,
como roubo ou furto, nos quais, em muitos casos a vítima, de tão descrente, nem
perde tempo se dirigindo a uma delegacia para fazer o registro?
Acontece que nem mesmo essa minoria, essa amostra ínfima, de
criminosos que é capturada e condenada, é devidamente punida. Claro, não se
podem negar as situações precárias dos presídios, que transformam a curta pena
em um “intensivo”. Quanto a isso, entretanto, não custa notar que aqueles que
declararam guerra contra a punição dos criminosos combatem duramente cada
projeto de construção de presídios, ao mesmo tempo em que acusam a desumanidade
da superlotação das celas.
Incoerências à parte, imaginem que uma pessoa é condenada a
6 anos de reclusão, em regime inicialmente semiaberto, e inicie sua pena em
dezembro de 2011. Ela deveria ficar presa até dezembro de 2017, certo? Pois não
é o que acontece...
Em vários estados do Brasil, o sistema carcerário sofre de
um déficit de vagas em regime semiaberto ([x]). Como o condenado não pode ser
punido além da condenação, se não houver vagas no regime estabelecido, ele é
recolhido em regime aberto, ou seja, em casa de albergado (inexistente na
maioria das comarcas brasileiras)([xi]), em prisão domiciliar, ou mesmo
libertado mediante uso de tornozeleira eletrônica. Assim, dependendo da sorte
de nosso detento-exemplo, ele vai para casa logo no primeiro dia.
Mas supondo que haja vaga no regime semiaberto, ainda assim
a situação não é muito pior. Com 1/6 da pena, a Lei de Execuções Penais
possibilita a progressão de regime. Ou seja, em dezembro de 2012, um ano após a
condenação, ele tem direito de ir para casa - de albergado ou a dele próprio.
Além disso, em dezembro de 2013, a pena é encerrada, pois
todo fim de ano a Presidência da República perdoa os presos que cumpriram 1/3
da pena (ou metade, se reincidente, dentre outras 18 hipóteses) ([xii]). Sim, o
sujeito é condenado a seis anos de reclusão na iminência da virada para 2012,
mas no final de 2013 ele está livre, leve e solto pelas ruas, perdoado do que
fez ([xiii]).
Os efeitos nefastos dessa política de não punição são muito
mais extensos do que a simples infusão de confiança no meliante, que reincide,
de novo e de novo, enquanto sacode os ombros com um irônico “dá nada não”.
Segundo relatório produzido pelo Ministério da Justiça em
2012, no ano de 1990, a proporção de presos provisórios - aqueles reclusos sem
condenação transitada em julgado - em relação à população carcerária, era de
18%. Em 2012, essa proporção aumentou para cerca de 40%. Em números absolutos,
a elevação foi de impressionantes 1093% ([xiv]).
As cifras dão a indicação preocupante de que as autoridades
judiciárias estão lançando mão aos últimos mecanismos disponíveis para evitar a
completa extinção das punições no Brasil. Sabendo que, ainda que condenado, o
criminoso não cumprirá a pena, a solução é decretar a prisão logo que iniciado
o processo, na esperança de que ao menos um pouco da sanção seja executada.
Do mesmo modo, a partir do exame dos recursos que chegam às
instâncias superiores, é possível observar que, provavelmente sob o mesmo
raciocínio, progressões de regime e indultos são postergados, presos são recolhidos
em regime mais gravoso até o surgimento de vagas, menores traficantes são
internados, tudo sem amparo legal.
Não é necessário dizer que isso arruína a segurança
jurídica. O uso indiscriminado das prisões cautelares é um convite a
segregações injustas. A administração da execução penal fora dos termos
estritos da lei transfere o fundamento da autoridade do magistrado do
ordenamento jurídico para sua subjetiva boa intenção.
Mas o efeito deletério da impunidade também não se limita ao
judiciário. Hoje são comuns os vídeos de desabafos de agentes de segurança
pública, indignados com as prisões sucessivas dos mesmos indivíduos em
intervalos ínfimos de tempo. Não é difícil prever que, mais hora, menos hora, a
paciência dos policiais se acabará e eles começarão– se ainda não tiverem
começado - a resolver o problema de uma forma menos ortodoxa.
Aliás, não é exatamente isso que tem feito a população, ao
linchar e amarrar os alegados criminosos, buscando retomar, à força, o direito
- e dever, frise-se - de punir, cedido ao Estado?
E assim, lentamente, vemos juízes, policiais e população se
afastarem da lei para poderem, só assim, fazer justiça. É obvio que nenhuma
justiça virá disso, mas sim uma sucessão de erros de julgamento que resultará
exatamente no contrário.
Enquanto isso, os clamores pela redução das punições
continuam sendo espalhados e atendidos. E sob tais pretextos, vamos nos
tornando, todos, criminosos.
Fonte: Mídia Sem Máscara
___________
Tiago Venson é analista judiciário.
Notas:
[i]Que, por sua vez, nada mais é do que uma compactação de
discursos anteriores, de exaltação do lumpenproletariat, que datam, no Brasil,
de ao menos 1930.
[ii]http://www.conjur.com.br/2013-fev-11/tourinho-neto-sou-garantista-porque-cumpro-constituicao
[iii]http://www.conjur.com.br/2013-fev-09/observatorio-constitucional-abuso-prisoes-provisorias-pais
[iv]http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/7797:cnj-apresenta-projeto-comecar-de-novo-a-juizes-das-varas-de-execucao-penal
[v]Alguns exemplos de tais motivações são a atratividade do
lucro fácil, a ausência de valores morais, o materialismo excessivo, o
vitimismo, o domínio do narcotráfico associado a uma subcultura de exaltação do
modo de vida “ostentação” dos traficantes, etc.
[vi]De tudo isso se conclui que, se é possível que seja
ruim punir, certamente é pior ainda não punir.
[vii]http://www.conjur.com.br/2011-mai-09/somente-homicidios-sao-resolvidos-50-mil-cometidos-pais
[viii]http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio_enasp_FINAL.pdf
[ix]Por concluídos entendem-se aqueles que resultaram em
denúncia – gerando uma ação penal – ou em pedido de arquivamento – considerados
casos perdidos.
[x]http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI194415,101048-Regime+semiaberto+praticamente+nao+existe+no+Brasil
[xi]http://s.conjur.com.br/dl/anteprojeto-reforma-lep.pdf
[xii]Ver o último Decreto Presidencial em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D8172.htm
[xiii]De regra, são excluídos do benefício apenas os
autores de crimes de tortura, terrorismo, tráfico e hediondos.
[xiv]http://www.conjur.com.br/2013-fev-09/observatorio-constitucional-abuso-prisoes-provisorias-pais
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