Por Olavo de Carvalho
Tempos atrás comentei aqui o trecho de Hegel que enaltecia a
capacidade humana de suprimir mentalmente todo dado exterior ou interior, a
capacidade, em suma, de negar o universo inteiro e fazer da consciência de si a
única realidade, entrando na "irrestrita infinitude da abstração absoluta
ou universalidade, o puro pensamento de si mesmo" (ver “Uma lição de Hegel”).
Faltou dizer que isso é a condição sine qua non para operar
seja a "crítica radical de tudo quanto existe" proposta por Karl
Marx, seja a "derrubada de todos os valores" almejada por Nietzsche.
Também é evidente que tanto Marx quanto Nietzsche varreram
para baixo do tapete a advertência de Hegel de que essa capacidade, exercida
precisamente com os poderes irrestritos que essas duas propostas exigiam, só
podia levar a uma sucessão de catástrofes: "O que essa liberdade negativa
pretende querer nunca pode ser algo em particular, mas apenas uma ideia
abstrata, e dar efeito a essa ideia só pode consistir na fúria da destruição."
A recusa de Marx de elaborar o plano detalhado da futura
sociedade socialista, ou mesmo de descrevê-la em linhas gerais, já continha em
germe a promessa de que as coisas se passariam exatamente assim. Quanto mais
vago e nebuloso o ideal a ser atingido, mais se pode adorná-lo de qualidades
excelsas ao mesmo tempo que se conserva o direito de cometer em nome dele toda
sorte de crimes e iniquidades.
E não é só a experiência histórica das tiranias soviética e
chinesa que o comprova. Quando hoje em dia o sr. Lula proclama: "Não
sabemos qual o tipo de socialismo que queremos", ele deixa claro de que
não se sente nem um pouco chocado de que o caminho para essa meta indefinível
tenha de passar pelo Mensalão, pelo dinheiro na cueca, pelo florescimento inaudito
do comércio de tóxicos, pela roubalheira da Petrobras, pelos setenta mil
homicídios anuais, pela redução dos nossos universitários a um bando de
analfabetos funcionais, pelo controle ditatorial da opinião pública, pela
gastança obscena da Copa do Mundo e por mais uma infinidade de capítulos
deprimentes. Tudo pela causa, que não precisa nem dizer qual é.
Mutatis mutandis, a figura do Super Homem que "cria os
seus próprios valores" é tão vaga e adjetiva que pôde ser usada para
inspirar desde o nazismo e o anticristianismo militante até as agitações
estudantis de maio de 1968, o anarquismo, os clubes de sadomasoquistas, a
pedofilia, o crime organizado e desorganizado, a indústria do aborto e o uso de
tatuagens e piercings nos órgãos genitais – enfim, qualquer coisa.
É incrível como marxistas e nietzscheanos permanecem
confortavelmente inconscientes de que, para realizar o que prometem, têm de
operar a "abstração absoluta" de que fala Hegel, colocando-se
portanto imaginariamente acima do universo, julgando-o e condenando-o. Diríamos
que se fazem de deuses? Não, porque os deuses são incluídos nesse universo e
julgados com ele, o que faz do autor dessa singela operação mental uma espécie
de super-deus, superior ao "maximamente grande" de Sto. Anselmo.
Também não é preciso dizer que, ao efetuar esse giro, levam
o idealismo subjetivo até às suas últimas conseqüências no momento mesmo em que
imaginam estar absorvendo e superando o idealismo objetivo de Hegel.
Mas tanto marxistas quanto nietzscheanos não podem dar-se
conta disso, senão teriam de perceber que seu julgamento do universo é apenas
uma fantasia individualista, destinada, seja a encerrar-se num solipsismo
inconsequente – o que seria a menos letal das hipóteses –, seja a espalhar-se
entre as massas como epidemia psicótica e descambar na 'fúria da
destruição", como de fato veio a acontecer.
Se os inspiradores dessa maravilha não sentem nenhuma culpa
pelo que produziram, se, ao contrário, continuam discursando com aqueles ares
de superioridade sublime de juízes do universo, não é porque lhes falte apenas
a consciência moral: antes disso já destruíram a sua própria consciência
intelectual, no momento em que recusaram a enxergar a índole radicalmente
subjetivista, a fuga desabalada da realidade, que era o centro da estratégia
cognitiva que adotaram.
Depois de ter jurado não entender nada, o sujeito não pode
nem mesmo entender que não entende. Resta-lhe a saída infalível: a pose, o
fingimento, a inconfundível empáfia de quem olha tudo desde cima, com cara de
nojinho.
Será de espantar que o século que se inspirou em Marx e
Nietzsche tenha sido o mais violento, o mais assassino de toda a história
humana? No entanto, ainda há, nos meios acadêmicos, um número suficiente de
idiotas que acreditam piamente nas virtudes da "destruição criativa",
negando a experiência histórica de que a única coisa que se cria com a
destruição é mais destruição. Agora mesmo, em 2013, a Editora Boitempo, do
indefectível dr. Emir Sader, promoveu um seminário internacional denominado
"Marx: a criação destruidora". Isso não tem mais fim.
Fonte: Percival Puggina
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Olavo de Carvalho é Jornalista, ensaísta e professor de Filosofia
- www.olavodecarvalho.org
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