Por Fernando Gabeira - O Estado de São Paulo
Num de seus recentes discursos, Dilma Rousseff afirmou que
as obras para a Copa terão padrão brasileiro, não padrão Fifa. Com essa frase
queria dizer também que nossos padrões são mais democráticos, naturalmente
referindo-se aos altos preços dos ingressos. Dilma fez tal declaração no fim de
um período em que a Copa do Mundo foi perdida fora do campo e todos esperamos,
ela com ansiedade singular, que seja ganha dentro do campo.
Essa frase de Dilma marca uma inflexão do governo nas suas
relações com a Fifa, cujos dirigentes afirmam que o Brasil propunha a Copa em
17, e não 12 cidades. Foi preciso conter a megalomania de Lula e a própria Fifa
foi otimista quando considerou 12 um bom número, levando em conta o tamanho do
Pais, não suas reais possibilidades.
O Estádio Mané Garrincha, beirando o R$ 1,5 milhão, custou
mais caro que um estádio do Qatar - país com a maior renda per capita do mundo
- para 2022. Se os cálculos forem comprovados, o padrão brasileiro foi mais
caro, no Mané Garrincha, do que o padrão Fifa sonharia. O estádio de Brasília é
um monumento. Não sabemos ainda se é um monumento à incompetência ou à
roubalheira, embora no padrão brasileiro os dois joguem no mesmo time, bem
perto do gol.
Três estádios foram plantados em cidades cujo futebol não
atrai multidões. O velho estádio de Natal só conseguiu lotação plena quando o
papa visitou a cidade. Para o novo estádio teremos de combinar com o papa
Francisco algumas visitas regulares, algo difícil porque um papa não faz
visitas apenas para cumprir tabela.
Em Cuiabá presenciamos um fato inédito na história: no dia
da visita de inspeção da Fifa, o governador e o presidente da Assembleia
estavam presos. É a Copa das Copas, ou o mico dos micos, como quiserem.
Em Manaus, na imensidão um estádio vazio, uma arena
amazônica que me deixa perplexo, sobretudo quando vejo o que vi na Vila de
Boim, a seis horas de barco de Santarém: o esforço das comunidades para jogarem
a sua própria Copa, numa região da floresta para a qual não existe política de
esporte.
Lula quis dar salto maior que as pernas e agora que o
fracasso se revela resta apenas ironizar o padrão Fifa que se comprometeu a
adotar.
A esquerda não tem o monopólio da duplicidade e da
dissimulação. Mas num partido como o PT e, sobretudo, num governo ditatorial
como o cubano, são os dois elementos vitais para sobreviver e crescer. Em O
Homem que Amava os Cachorros, Leonardo Padura fala de uma família cubana,
possivelmente a do próprio escritor, que ensinou aos filhos exatamente o oposto
dessa regra da sobrevivência: falar a verdade, ser fiel a si próprio.
O discurso do governo brasileiro em relação à Copa é de um
zigue-zague acrobático, uma tentativa desesperada de abordar os fatos de frente
e cair na realidade. Não foi uma ideia feliz trazer a Copa para o Brasil e
assumir os compromissos que assumiu com a Fifa.
Isso não significa que a Copa não deva ocorrer, muito menos
que deixamos de torcer pela vitória dentro do campo. Significa apenas que a
linguagem cínica do governo é uma fonte permanente de degradação da vida
política. Reflete uma lei interna segundo a qual não é preciso dizer o que
pensa, regra válida para todos os que aderem. Basta que façam o jogo, dancem de
acordo com a música.
Até que ponto o cinismo triunfará amplamente numa sociedade
democrática é o enigma que envolve o futuro próximo do Brasil. Controlar o
aparato estatal, o Parlamento e até o Supremo Tribunal ainda é um cobertor
curto. Restam a sociedade, a imprensa, a internet.
Os militares compreenderam que não tinham resposta para o
futuro e organizaram a retirada para não baterem em fuga desordenada,
arriscando a instituição. O PT não acumulou forças para encarar a verdade,
arriscar o poder e preservar-se para o futuro.
O discurso de Dilma não é voltado para a frente. Apenas
adverte que a vitória da oposição significará um ajuste que vai reduzir
salários, aumentar o desemprego e cortar verbas sociais. Embora não reconheça,
ela deve saber que é necessário um ajuste, que pode ser moderado, no sentido
que lhe dá Amartya Sen. Quer dizer, não precisa reduzir salários nem cortar
verbas sociais. Um ajuste desse tipo seria voltado para os gastos irracionais
do governo. Mas bateria de frente com o mundo político e burocrático, toda essa
gente agarrada a cargos, verbas, negociatas. Às vezes, quando falamos em
defender o salário do povo, estamos defendendo os nossos próprios salários. E
reaparecem aí a duplicidade e a dissimulação.
Dotar o Brasil de um governo inteligente, aberto e
conectado, transformar um sistema político que se tornou uma gigantesca
sanguessuga não figuram no seu horizonte. O único caminho é usar os interesses
populares como escudo para os seus próprios interesses e agarrar-se ao poder.
Na classificação de presidentes de toda a República no
quesito crescimento, Dilma está em penúltimo e Fernando Collor em antepenúltimo
lugar, atrás de Floriano Peixoto, portanto, entre os quatro de baixo que vão
para a Segundona. Ao afirmar que as dificuldades econômicas foram conjunturais,
ela pede uma segunda chance. Mas pede como se estivesse no grupo de cima,
preparando-se para a Libertadores.
Como dizia Cazuza, suas palavras não correspondem aos fatos,
sua piscina está cheia de ratos. Aceitar que suas palavras não correspondem aos
fatos e limpar a piscina política e administrativa dos seus ratos é uma tarefa
gigantesca. O caminho mais fácil é controlar o Estado, o Parlamento o Supremo,
mobilizar uma artilharia eletrônica.
Que venham todos, porque, independentemente de resultados
eleitorais, há um imenso número de brasileiros sabendo o que há por trás dessa
duplicidade e dissimulação. Gente que gostaria de falar sério sobre nossos
problemas, e não perder a energia desmontando as bravatas de Lula, como essa da
Copa. Perdemos tempo, dinheiro, operários, moradias, irresponsabilidade que nem
a vitória no campo conseguirá apagar.
Fonte: A Verdade Sufocada
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