"Quero falar ao pai e à mãe de família, que são
parceiros estratégicos, são eles que sofrem dor. Temos de fazer da dor deles a
nossa dor, e ao fazer isso, ter clareza que vamos fazer tudo que estiver ao
nosso alcance para a recuperação desses filhos e filhas (que usam drogas)"
– DILMA ROUSSEF, 7 DE DEZEMBRO DE 2011,
lançando um programa de R$ 4 bilhões para conter a epidemia do crack. Nunca
funcionou.
"A raspa da canela do capeta." Assim era conhecido
o crack quando surgiu em São Paulo, na periferia da zona leste. Era fim dos
anos 1980 e o Brasil vivia os desafios da redemocratização, após 20 anos de
ditadura militar. Subproduto sujo e barato da cocaína, a droga que deve seu
nome aos estalos que emite ao ser queimada logo se tornou o prazer e a praga
dos excluídos, de farrapos humanos que pouco importavam à sociedade e,
consequentemente, ao poder público.
Passados mais de 20 anos, esse cenário mudou: hoje, o crack
está presente em todos os cantos do Estado. Dos grandes centros urbanos, migrou
para cidades pequenas e afastadas, antigos rincões do sossego. Também escalou a
pirâmide social e chegou às mansões. Com a mesma rapidez com que corrompe e
danifica o organismo, virou a principal droga ilícita tanto em municípios
pobres e pouco desenvolvidos quanto em regiões de economia aquecida, estâncias
turísticas, balneários, paraísos litorâneos e na roça.
Em mapeamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM),
atualizado em tempo real pelas prefeituras, 194 cidades paulistas – das 556
participantes – declararam ter alto problema decorrente de consumo de crack.
Entre elas estão Águas de Lindoia e Serra Negra (estâncias hidrominerais do
Circuito das Águas), Campos do Jordão (a "Suíça brasileira"),
Ilhabela (reduto de Mata Atlântica no litoral norte), Cananeia (patrimônio da
humanidade), além de cidades-referência, como Ibitinga (a capital do bordado),
Monte Alegre do Sul (capital do morango), São Roque (terra do vinho), Louveira
(2.º maior PIB per capita do País).
Diferentemente das regiões metropolitanas, onde dependentes
se concentram nas cracolândias em locais públicos, à vista de todos, nos
recantos de sossego do interior o crack geralmente avança de forma oculta, com
usuários "invisíveis" escondidos em casas de consumo,
"mocós", no meio do mato, em pontos de venda conhecidos como
"biqueiras" ou "bocas". São cidades pequenas, onde todos se
conhecem, como Fernão (1,5 mil habitantes), Martinópolis (24 mil), Vera Cruz
(10 mil), Gavião Peixoto (4,4 mil), Garça (43 mil) e Registro (54 mil).
Durante quatro meses, a reportagem do Estadão percorreu 6,6
mil quilômetros para levantar dados, ouvir autoridades federais, estaduais e
municipais, visitar clínicas, comunidades terapêuticas, ambulatórios
especializados e pontos de consumo – foram consultados 28 agentes públicos,
profissionais da área e especialistas. No caminho, visitou 13 municípios que
denunciaram alto ou médio problema com crack no mapa da CNM, em diferentes
pontos do território paulista, e conversou com 50 usuários, ex-usuários, parentes
e moradores para montar um diagnóstico do avanço e das mazelas provocadas pelo
crack no interior de São Paulo.
Na maioria das cidades, a rede pública em geral é
deficitária, os profissionais são despreparados para lidar com a dependência e
as ações de governo acabam sendo feitas sem a integração necessária. Uma
combinação de carências que potencializa os danos em cadeia provocados pelo
aumento do consumo abusivo da droga e extrapola as áreas de saúde e polícia.
Além de influir na degradação do usuário e no aumento da criminalidade, o
avanço do crack faz crescer a população em situação de rua e pode interferir na
economia local.
Apesar de o consumo de crack no Brasil ainda ser menor que o
do álcool e o da cocaína em pó, o tratamento de dependentes da versão fumada da
coca é um desafio para médicos e especialistas. Estudos indicam que, em média,
apenas um terço dos usuários severos consegue se tratar e retomar a vida – os
outros dois terços morrem ou continuam na droga. Para quem pode pagar, a
recuperação é uma realidade mais próxima. Mas, para a grande maioria das
pessoas que dependem da rede pública, os investimentos e programas de
enfrentamento ao crack lançados nos últimos anos pelas diferentes esferas de
governo ainda são um benefício distante – principalmente nas pequenas e médias
cidades do interior. Quando há serviços ou empenho político local, falta a
condição adequada para cumprir todo o ciclo necessário de atendimento – redução
ou abstinência de uso, reaprendizado de como é a vida sem a droga e reinserção
nos ambientes familiar e social.
Há outro empecilho: embora especialistas e as próprias
autoridades concordem que as políticas dos governos federal e estadual devem
caminhar juntas e se complementar, na prática União e Estado trilham rumos
distintos. Enquanto a primeira prioriza o tratamento domiciliar, com
acompanhamento nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), o segundo aposta na
Justiça terapêutica, com internações – involuntárias ou não – em hospitais
especializados e comunidades terapêuticas para interromper o consumo de vez. Um
descompasso que só prejudica quem tenta vencer o drama da dependência.
(Estadão)
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