Por Reinaldo Azevedo - Folha de São Paulo
1964 já era! Tenho saudade é de 2064! Os historiadores podem
e devem se interessar pelos eventos de há 50 anos, mas só oportunistas querem
encruar a história, vivendo-a como revanche. Enfara-me a arqueologia vigarista.
Trata-se de uma farsa política, intelectual e jurídica, que busca arrancar do
mundo dos mortos vantagens objetivas no mundo dos vivos. A semente do mensalão
está nos delírios do Araguaia. O dossiê dos aloprados foi forjado pela turma
que roubou o "Cofre do Adhemar". Os assaltos à Petrobras foram
planejados pelas homicidas VAR-Palmares, de Dilma, e ALN, de Marighella. A
privatização do passado garante, em suma, lugares de poder no presente e no
futuro. Os farsantes apelam à mitologia para reivindicar o exclusivismo moral
que justifica seus crimes de hoje. Ladrões se ancoram na gesta da libertação
dos oprimidos. Uma solene banana para eles, com seus punhos cerrados e seus
bolsos cheios!
Quem falava em nome dos valores democráticos em 1964? Os que
rasgaram de vez a Constituição ou os que a rasgavam um pouco por dia? Exibam um
texto, um só, das esquerdas de então que defendesse a democracia como um valor
em si. Uma musiquinha do CPC da UNE para ilustrar: "Ah, ah, democracia!
Que bela fantasia!/ Cadê a democracia se a barriga está vazia?" Para bom entendedor,
uma oração subordinada basta. A resposta matou mais de 100 milhões só de...
fome!
Nota desnecessária em tempos menos broncos: respeito a
disposição dos que querem encontrar seus mortos. Eu não desistiria enquanto
forças tivesse. Mas não lhes concedo a legitimidade, menos ainda a alguns
prosélitos disfarçados de juristas, para violar as regras do Estado de Direito.
A anistia, por exemplo, não está consignada apenas na lei nº 6.683. O perdão
--não o esquecimento-- é também o pressuposto da Emenda Constitucional nº 26
(ow.ly/v4ZK9 ), de 1985, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte. Vamos
declarar sem efeito o texto que nos deu a nova Constituição? A pressão em favor
da revogação da anistia e a conversão da Comissão da Verdade --se estatal, ela
é necessariamente mentirosa-- num tribunal informal da história ignoram os
pactos sobre os quais se firmaram a pacificação política do país.
Digam-me: onde estávamos em 1985? Revivendo a repressão de
1935, que se seguiu à "Intentona Comunista"? E em 1987? Maldizendo os
50 anos do Estado Novo? E em 1995, celebrando o seu fim? Estado Novo? Eis a
ditadura que os "progressistas" apagaram da memória. Um tirano como
Getúlio Vargas foi recuperado pelas esquerdas para a galeria dos heróis do
anti-imperialismo e serve de marco, segundo os pensadores amadores, para
distinguir "demófobos" de "demófilos".
Ilustro rapidamente. Entre novembro de 1935 e maio de 1937,
só no Rio, foram detidas 7.056 pessoas. Todas as garantias individuais estavam
suspensas. Dois navios de guerra foram improvisados como presídios. Em 1936,
criou-se o Tribunal de Segurança Nacional, que condenou mais de 4 mil pessoas
--Monteiro Lobato entre elas. Mais de 10 mil foram processadas. A Constituição
de 1937 previa a pena de morte para quem tentasse "subverter por meios
violentos a ordem política e social". Leiam o decreto nº 428, de 1938,
para saber como era um julgamento de acusados de crime político. Kim Jong-un
ficaria corado. A tortura se generalizou. No assalto ao Palácio da Guanabara,
promovido por integralistas em maio de 1938, oito pessoas presas, desarmadas e
rendidas foram assassinadas a sangue frio, no jardim, sem julgamento, por
Benjamin e Serafim Vargas, respectivamente irmão e sobrinho de Getúlio. No dia
9 de novembro de 1943, a Polícia Especial enfrentou a tiros uma passeata de
estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, com duas vítimas
fatais. Tudo indica que os mortos e desaparecidos do Estado Novo, sem guerrilha
nem ataques terroristas, superaram em muito os do regime militar. Nunca se fez
essa contabilidade. Nesse caso, a disputa pelo presente e pelo futuro pedia que
se escondessem os cadáveres.
Getúlio virou um divisor de águas ideológicas na história
inventada pelos comunistas, oportunistas e palermas e é o pai intelectual de
João Goulart, o golpista incompetente deposto em 1964. Antes, como agora,
"eles" sabem como transformar em heróis seus assassinos. A
arqueologia do golpe é um golpe contra o futuro. Viva 2064! (Da Folha de S.
Paulo desta sexta-feira)
Fonte: A Verdade Sufocada
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