sexta-feira, 30 de maio de 2014

Nós, os ordinários


O sujeito não pode, na TV, em uma evidente troça, chamar uma mulher de "ordinária" – mas está livre para (a sério, a trabalho) fazê-la rebolar quase nua, na mesma TV, no meio da tarde de domingo, para toda família ver.

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Somos nós, brasileiros, um povo sentimental, epidérmico e, por isso mesmo, raso, superficial. (Tanto que o termo “epidérmico”, que em seu sentido derivado primeiro possui as descrições negativas “sem profundidade” e “superficial”, derivou para um uso positivo, sendo ora sinônimo de reação inconformada.)Mas somos gente boa. Boa até demais, ao ponto de os aproveitadores deitarem e rolarem por aqui, aplicando sobre nossa superficialidadeuma engenharia social muito bem calculada.O resultado é um teatro dos absurdos continental.

Na última quarta-feira, 28 de maio de 2014, o Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária (Conar) considerou “desrespeitoso” o uso do termo “ordinária” em uma peça para a televisão. Querem proteger o povo de uma linguagem supostamente ofensiva, mas não foi o povo quem se ofendeu com isso, assim como não é o povo quem defende o aborto, a leniência oficial para com a bandidagem e a injeção de milhões de reais por ano em cursos de pós-graduação sobre a etnografia desconstrutivista pós-hipermoderna das tribos oprimidas do su-sudoeste africano. Mas somos nós, o povo, quem dá condições para que boa parte dos magistrados, legisladores, administradores, reguladores e auto-reguladores imponham sobre nós, o povo, suas concepções distorcidas de mundo.

O circuito é este: a beautiful people (a elite do jornalismo, da publicidade, da academia, do judiciário e da política) decide o que é e o que não é aceitável, impondo suas diretrizes sobre as ações de seus subordinados (a massa do jornalismo, da publicidade, da academia, do judiciário e da política); estes, nas editorias, nos escritórios, nas universidades, nos tribunais e nas casas legislativas e repartições absorvem e divulgam o discurso pré-moldado (não raro, sem nem perceberem), ignorando solenemente o que nós, o povão, pensamos; nós, por fim, seguimos silentes e, por isso, sem representação em nenhuma esfera de poder deste país. Pouco importa, por exemplo, que a ampla maioria dos brasileiros queira ver a bandidagem quebrando pedra em presídio; quem toma as decisões no Brasil decide pelo oposto disso porque leu no jornal ou viu na TV que bandido bom é bandido adulado, acarinhado, massageado.

Por aqui, então, o sujeito não pode, na TV, em uma evidente troça, chamar uma mulher de "ordinária" – mas está livre para (a sério, a trabalho) fazê-la rebolar quase nua, na mesma TV, no meio da tarde de domingo, para toda família ver. Falo do protagonista da propaganda censurada, o Compadre Washington, que, com seu grupo “É o Tchan!”, nos anos 90 invadiu os lares brasileiros com um exército de bundas e muita música ruim. [A culpa não era só do tal Compadre, mas de quem o levava ao ar (entre eles, alguns publicitários que hoje hão de estar no Conar). “Manifestações artísticas” de péssima qualidade sempre existiram, ainda mais por aqui, onde qualquer sacolejar de chocalho é considerado arte. O problema é dar notoriedade a isso.]

Não surpreende. Por aqui, grupos muito mobilizados e engajados regulamentam a educação parental, com a pretensão de impedir que pais dêem palmadas em seus filhos para ensiná-los a ter modos e a respeitar os mais velhos. Por outro lado, é possível pleitear, com a ajuda dos mesmos grupos, o assassinato do filho ainda no ventre materno. E nós, o povo, o que pensamos disto? Bem, em geral, somos contra, mas, porque não queremos perder amigos e tempo com discussões, deixamos para lá. Ademais, a palmada é dada a olhos vistos, o que fere nossos sentidos, enquanto o aborto é feito às escondidas, por debaixo dos panos. “O que o coração não vê os olhos não sentem” – deveria ser esta a inscrição da bandeira nacional.

Piada, não; exposição extremada, sim. Palmada, não; morte, sim.

Por aqui, enfim, são atacadas as sensações, as manifestações mais superficiais do comportamento, cujas conseqüências, em verdade, são inócuas; contudo, ações realmente graves são liberadas e, pior, até mesmo estimuladas.

É por isso que choramos de emoção quando uma faxineira devolve uma bolsa com 10 mil reais a seu dono (somos gente boa, lembra?), mas damos de ombros quando o presidente da república, outrora sindicalista humilde, transforma-se num dos homens mais ricos da corte (não vamos perder tempo nem amigos discutindo, lembra?). É por isso que há comoção nacional quando vem a público algum vídeo de algum maluco espancando um animal, mas há indiferença quando sabemos que 50 mil pessoas morrem por ano em função da violência. De fato, somos muito ordinários.


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