Por Colombo Mendes
O sujeito não pode, na TV, em uma evidente troça, chamar uma
mulher de "ordinária" – mas está livre para (a sério, a trabalho)
fazê-la rebolar quase nua, na mesma TV, no meio da tarde de domingo, para toda
família ver.
Somos nós, brasileiros, um povo sentimental, epidérmico e,
por isso mesmo, raso, superficial. (Tanto que o termo “epidérmico”, que em seu
sentido derivado primeiro possui as descrições negativas “sem profundidade” e
“superficial”, derivou para um uso positivo, sendo ora sinônimo de reação
inconformada.)Mas somos gente boa. Boa até demais, ao ponto de os
aproveitadores deitarem e rolarem por aqui, aplicando sobre nossa
superficialidadeuma engenharia social muito bem calculada.O resultado é um
teatro dos absurdos continental.
Na última quarta-feira, 28 de maio de 2014, o Conselho
Nacional de Auto-regulamentação Publicitária (Conar) considerou “desrespeitoso”
o uso do termo “ordinária” em uma peça para a televisão. Querem proteger o povo
de uma linguagem supostamente ofensiva, mas não foi o povo quem se ofendeu com
isso, assim como não é o povo quem defende o aborto, a leniência oficial para
com a bandidagem e a injeção de milhões de reais por ano em cursos de
pós-graduação sobre a etnografia desconstrutivista pós-hipermoderna das tribos
oprimidas do su-sudoeste africano. Mas somos nós, o povo, quem dá condições
para que boa parte dos magistrados, legisladores, administradores, reguladores
e auto-reguladores imponham sobre nós, o povo, suas concepções distorcidas de
mundo.
O circuito é este: a beautiful people (a elite do
jornalismo, da publicidade, da academia, do judiciário e da política) decide o
que é e o que não é aceitável, impondo suas diretrizes sobre as ações de seus
subordinados (a massa do jornalismo, da publicidade, da academia, do judiciário
e da política); estes, nas editorias, nos escritórios, nas universidades, nos
tribunais e nas casas legislativas e repartições absorvem e divulgam o discurso
pré-moldado (não raro, sem nem perceberem), ignorando solenemente o que nós, o
povão, pensamos; nós, por fim, seguimos silentes e, por isso, sem representação
em nenhuma esfera de poder deste país. Pouco importa, por exemplo, que a ampla
maioria dos brasileiros queira ver a bandidagem quebrando pedra em presídio;
quem toma as decisões no Brasil decide pelo oposto disso porque leu no jornal
ou viu na TV que bandido bom é bandido adulado, acarinhado, massageado.
Por aqui, então, o sujeito não pode, na TV, em uma evidente
troça, chamar uma mulher de "ordinária" – mas está livre para (a
sério, a trabalho) fazê-la rebolar quase nua, na mesma TV, no meio da tarde de
domingo, para toda família ver. Falo do protagonista da propaganda censurada, o
Compadre Washington, que, com seu grupo “É o Tchan!”, nos anos 90 invadiu os
lares brasileiros com um exército de bundas e muita música ruim. [A culpa não
era só do tal Compadre, mas de quem o levava ao ar (entre eles, alguns
publicitários que hoje hão de estar no Conar). “Manifestações artísticas” de
péssima qualidade sempre existiram, ainda mais por aqui, onde qualquer
sacolejar de chocalho é considerado arte. O problema é dar notoriedade a isso.]
Não surpreende. Por aqui, grupos muito mobilizados e
engajados regulamentam a educação parental, com a pretensão de impedir que pais
dêem palmadas em seus filhos para ensiná-los a ter modos e a respeitar os mais
velhos. Por outro lado, é possível pleitear, com a ajuda dos mesmos grupos, o
assassinato do filho ainda no ventre materno. E nós, o povo, o que pensamos
disto? Bem, em geral, somos contra, mas, porque não queremos perder amigos e
tempo com discussões, deixamos para lá. Ademais, a palmada é dada a olhos
vistos, o que fere nossos sentidos, enquanto o aborto é feito às escondidas,
por debaixo dos panos. “O que o coração não vê os olhos não sentem” – deveria
ser esta a inscrição da bandeira nacional.
Piada, não; exposição extremada, sim. Palmada, não; morte,
sim.
Por aqui, enfim, são atacadas as sensações, as manifestações
mais superficiais do comportamento, cujas conseqüências, em verdade, são
inócuas; contudo, ações realmente graves são liberadas e, pior, até mesmo
estimuladas.
É por isso que choramos de emoção quando uma
faxineira devolve uma bolsa com 10 mil reais a seu dono (somos gente boa,
lembra?), mas damos de ombros quando o presidente da república, outrora
sindicalista humilde, transforma-se num dos homens mais ricos da corte (não
vamos perder tempo nem amigos discutindo, lembra?). É por isso que há comoção
nacional quando vem a público algum vídeo de algum maluco espancando um animal,
mas há indiferença quando sabemos que 50 mil pessoas morrem por ano em função
da violência. De fato, somos muito ordinários.
Fonte: Mídia Sem Máscara
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