Eu, como boa parte dos leitores de jornal, nem aguento mais
ler as notícias que entremeiam política com corrupção. É um sem-fim de
escândalos. Algumas vezes, mesmo sem que haja indícios firmes, os nomes dos
políticos aparecem enlameados. Pior, de tantos casos com provas veementes de
envolvimento em "malfeitos", basta citar alguém para que o leitor se
convença de imediato de sua culpabilidade. A sociedade já não tem mais dúvidas:
se há fumaça, há fogo.
Não escrevo isso para negar responsabilidade de alguém
especificamente, nem muito menos para amenizar eventuais culpas dos que se
envolveram em escândalos, nem tampouco para desacreditar de antemão as
denúncias. Os escândalos jorram em abundância, não dá para tapar o sol com
peneira. O da Petrobrás é o mais simbólico, dado o apreço que todos temos pelo
que a companhia fez para o Brasil. Escrevo porque os escândalos que vêm
aparecendo numa onda crescente são sintomas de algo mais grave: é o próprio
sistema político atual que está em causa, notadamente suas práticas eleitorais
e partidárias.
Nenhum governo pode funcionar na normalidade quando atado a
um sistema político que permitiu a criação de mais de 30 partidos, dos quais 20
e poucos com assento no Congresso. A criação pelo governo atual de 39
ministérios para atender às demandas dos partidos é prova disso e, ao mesmo
tempo, é garantia de insucesso administrativo e da conivência com práticas de
corrupção, apesar da resistência a essas práticas por alguns membros do
governo.
Não quero atirar a primeira pedra, mesmo porque muitas já
foram lançadas. Não é de hoje que as coisas funcionam dessa maneira. Mas a
contaminação da vida político-administrativa foi-se agravando até chegarmos ao
ponto a que chegamos. Se, no passado, nosso sistema de governo foi chamado de
"presidencialismo de coalizão", agora ele é apenas um
"presidencialismo de cooptação".
Eu nunca entendi a razão pela qual o governo Lula fez
questão de formar uma maioria tão grande e pagou o preço do mensalão. Ou
melhor, posso entendê-la: é porque o PT tem vocação de hegemonia. Não vê a
política como um jogo de diversidade no qual as maiorias se compõem para fins
específicos, mas sem a pretensão de absorver a vida política nacional sob um
comando centralizado.
Meu próprio governo precisou formar maiorias. Mas havia um
objetivo político claro: precisávamos de três quintos da Câmara e do Senado
para aprovar reformas constitucionais necessárias à modernização do País.
Ora, os governos que me sucederam não reformaram nada nem
precisaram de tal maioria para aprovar emendas constitucionais. Deixaram-se
levar pela dinâmica dos interesses partidários. Não só do partido hegemônico no
governo, o PT, nem dos maiores, como o PMDB, mas de qualquer agregação de 20,
30 ou 40 parlamentares, às vezes menos, que, para participar da "base de
apoio", se organizam numa sigla e pleiteiam participação no governo: um
ministério, se possível; senão, uma diretoria de empresa estatal ou uma
repartição pública importante. Daí serem precisos 39 ministérios para dar
cabida a tantos aderentes. No México do PRI dizia-se que fora do orçamento não
havia salvação...
A raiz desse sistema se encontra nas regras eleitorais que
levam os partidos a apresentarem uma lista enorme de candidatos em cada Estado
para, nelas, o eleitor escolher seu preferido, sem saber bem quem são ou que
significado político-partidário têm. Logo depois nem se lembra em quem votou. A
isso se acrescenta a liberalidade de nossa Constituição, que assegura ampla liberdade
para a formação de partidos.
Por isso, não se podem obter melhorias nessas regras por
intermédio da legislação ordinária. Algumas dessas melhorias foram aprovadas
pelos parlamentares. Por exemplo, a exigência de uma proporção mínima de votos
em certo número de Estados para a autorização do funcionamento dos partidos no
Congresso. Ou a proibição de coligações nas eleições proporcionais, por meio
das quais se elegem deputados de um partido coligado aproveitando a sobra de
votos de outro partido. Ambas foram recusadas por inconstitucionais pelo
Supremo Tribunal Federal.
Com o número absurdo de partidos (a maior parte deles meras
siglas sem programa, organização ou militância), forma-se, a cada eleição, uma
colcha de retalhos no Congresso, em que mesmo os maiores partidos não têm mais
do que um pedaço pequeno da representação total. Até a segunda eleição de Lula,
os presidentes se elegiam apoiados numa coalizão de partidos e logo tinham de
ampliá-la para ter a maioria no Congresso. De lá para cá, a coalizão eleitoral
passou a assegurar maioria parlamentar. Mas, por vocação do PT à hegemonia, o
sistema degenerou no que chamo de "presidencialismo de cooptação". E
deu no que deu: um festival de incoerências políticas e portas abertas à
cumplicidade diante da corrupção.
Mudar o sistema atual é uma responsabilidade coletiva.
Repito o que disse, em outra oportunidade, a todos os que exerceram ou exercem
a Presidência: por que não assumimos nossas responsabilidades, por mais diversa
que tenha sido nossa parcela individual no processo que nos levou a tal
situação, e nos propomos a fazer conjuntamente o que nossos partidos, por suas
impossibilidades e por seus interesses, não querem fazer - mudar o sistema? Sei
que se trata de um grito um tanto ingênuo, pedir grandeza. A visão de curto
prazo encolhe o horizonte para o hoje e deixa o amanhã distante. Ainda assim,
sem um pouco de quixotismo, nada muda.
Se, de fato, queremos sair do lodaçal que afoga a política e
conservar a democracia que tanto custou ao povo conquistar, vamos esperar que
uma crise maior destrua a crença em tudo e a mudança seja feita não pelo
consenso democrático, mas pela vontade férrea de algum salvador da Pátria
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*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e foi presidente da
República.
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