Por Denis Lerrer Rosenfield
Chamou particularmente atenção, nas últimas semanas, a
profusão de notícias e artigos rememorando o golpe (ou contragolpe, segundo a
perspectiva) de 1964. É bem verdade que haveria uma razão para isso, uma vez
que se trata de 50 anos daquele evento. Não é menos verdadeiro, porém, que os
militares estão sendo objeto de um cerco, onde não está somente em pauta uma
melhor apuração da tortura, mas, sobretudo, a instituição militar enquanto tal.
Não seria apenas um necessário exercício histórico de memória, mas uma operação
política com um alvo determinado: a revogação da Lei da Anistia.
Há, ademais, uma série de iniciativas parlamentares que visa
explicitamente a essa revogação, restrita, evidentemente, aos artigos que dizem
respeito à violência cometida por alguns grupos militares, nenhuma referência
sendo feita à violência praticada pela luta armada empreendida por organizações
de esquerda. Vale para uns, não vale para outros.
A transição democrática no país foi um exemplo para o mundo,
tendo se realizado sem traumas nem eclosão de violência. São inúmeros os
exemplos no planeta em que a saída de regimes autoritários ou ditatoriais se
deu pela luta armada e, mesmo, pela guerra civil. Não é o caso do país, que fez
uma transição pactuada entre os próprios militares democráticos, a oposição,
sobretudo personificada no MDB, e os egressos do partido do governo, a Arena,
que vieram a fundar o PFL. O seu instrumento central foi a Lei da Anistia, que
alcançou todos os envolvidos em atos de violência anteriores. Tratou-se,
naquele então, de um grande acordo nacional, maciçamente apoiado pela sociedade
brasileira, aprovado pelo Congresso Nacional e, ainda mais recentemente, validado
pelo Supremo Tribunal Federal.
A anistia é uma espécie de pacto que viabiliza um novo
começo. Se não há um perdão estendido a todas as partes, elas continuam se
envolvendo em toda sorte de disputas, recorrendo à violência enquanto um dos
seus instrumentos. O futuro se torna refém de um passado não resolvido e
estranhamente presente. A partir do momento em que uma sociedade decide
voltar-se para o seu futuro, não sendo mais refém de contenciosos pretéritos,
ela deve dar-se uma anistia generalizada, para que todos os que se envolveram
em lutas se sintam seguros. A partir daí, a violência deixa de ser um
instrumento da luta política, que passa a pautar-se por regras republicanas,
produzidas por uma espécie de consenso coletivo que, em nosso país, concretizou-se
em uma Assembleia Constituinte.
Anistia não significa esquecimento, mas aprendizado do
passado visando a um novo começo. Os fatos passados devem ser apurados, seja lá
de que lado for. Isso faz parte da história de um país. Quanto mais um país se
conheça, melhores serão as condições de um futuro que não repita os erros do
passado. Contudo, para que tal aconteça, a história deve ser uma narrativa fiel
dos eventos pretéritos, sem escolha ideológica, descartando os fatos que
incomodam os que estão realizando tal narrativa. A tortura deve ser apurada, do
mesmo modo que os crimes cometidos pela esquerda. O que não pode é que tal
narrativa se torne um faroeste ideológico, com os mocinhos da esquerda e os
bandidos da direita.
Note-se que a esquerda “revolucionária”, hoje tão decantada,
ficou totalmente à margem deste processo. Não apenas isso, ela tinha sido
completamente derrotada na luta armada, não tendo tido nenhum apoio popular,
sendo uma operação militar de intelectuais e estudantes, despreparados, porém
ideologicamente bem apresentados. Atualmente, procura-se envernizar essa
esquerda que não tinha nenhum compromisso com a liberdade e a democracia. Hoje,
eles posam de combatentes da democracia, quando nada mais eram do que
instrumentos de implantação do comunismo/socialismo no país. O seu objetivo
consistia em instituir a “ditadura do proletariado” que, enquanto “ditadura”,
não pode ser evidentemente democrática!
Um dos episódios mais retomados nesses últimos meses, como
de desrespeito dos militares com os direitos humanos, consiste na guerrilha do
Araguaia. Agora, os atores revolucionários são apresentados como combatentes da
democracia. Eles eram maoístas e seguiam as diretrizes dessa forma de marxismo
asiático. Seu objetivo consistia claramente em criar no Brasil um Estado
totalitário aos moldes de Mao. Alguns eram também albaneses, uma variante ainda
mais mortífera do maoísmo. Para eles, a democracia era burguesa e, portanto,
deveria ser completamente destruída. Neste sentido, o que os militares fizeram
ao aniquilá-la foi simplesmente evitar que o totalitarismo maoísta se
instalasse entre nós. Liberticidas se tornam combatentes da liberdade!
A presidente Dilma, por sua vez, foi dúbia em suas
declarações. De um lado, reconhece a importância da Lei da Anistia,
considerando-a como irrevogável. De outro, dá liberdade aos seus ministros para
que lutem por sua revogação. Ministros deveriam seguir a posição da presidente,
não lhes cabendo contrariá-la. Para tanto, podem renunciar às suas funções. Se
um parlamentar petista se manifesta contra a Lei da Anistia, isso é um direito
seu, em uma sociedade que se caracteriza pela liberdade de expressão. Não é o
caso de ministros, que devem seguir orientações.
O grande problema da revisão da Lei da Anistia
consiste em que ela seria uma quebra de contrato, uma quebra de contrato
institucional, que se encontra na própria raiz da democracia brasileira. Não se
pode, 50 anos depois, deixar o dito pelo não dito como se a palavra que uma
sociedade engaja consigo mesma nada valesse. Tal medida não apenas produziria
instabilidade institucional, como seria uma péssima sinalização para o futuro.
Se acordos políticos podem ser arbitrariamente revogados, não há por que
fazê-los, nem, muito menos, cumpri-los. Na verdade, é uma volta da vingança sob
a forma do politicamente correto. Mais ainda, tal medida constituiria uma
ameaça à própria democracia.
Fonte: A Verdade Sufocada
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