Não há forma mais perversa de criminalizar a liberdade de
expressão e de manifestação do que confundi-la com banditismo. Durante um bom
tempo, o país viveu uma espécie de apagão legal, com um governo incapaz de
cumprir uma de suas funções — que é a garantia da lei e da ordem democráticas,
conforme exige a Constituição — e uma imprensa que passou a fazer profissão de
fé na baderna, como se estivéssemos diante de um quadro em que a sociedade está
sendo esmagada pelo estado, sem canais para expressar o seu descontentamento
que não a violência.
Escrevi aqui em junho e nos meses seguintes: o Brasil não
era o Egito. O Brasil não era a Líbia. O Brasil não era nem mesmo a Turquia. O
primeiro país passou, tudo bem pesado, por três golpes. O segundo está sendo
governado por milícias terroristas. O terceiro vive uma luta intestina entre a
democracia como um valor laico, que não repudia a religião, e a religião que se
pretende expressão da maioria e que repudia a… democracia.
A Polícia, o Ministério Público e a Justiça resolveram,
depois de uma fase de espantoso entorpecimento, agir contra os vândalos da
ordem democrática. Espero que, num futuro nem tão distante, ainda venhamos a
refletir sobre estes dias e perguntar como foi possível ter tanta tolerância
com a violência, com a truculência, com a determinação escancarada de violar
princípios elementares da civilidade. E foi precisamente isso que fizeram os
black blocs e alguns ditos “líderes” de manifestações que agora tiveram a
prisão preventiva decretada.
Compreendo que o papel dos advogados seja, afinal, advogar…
Não questiono a legitimidade de sua tarefa, um dos pilares do Estado de
Direito. Mas essa mesma ordem, que defendo de modo incondicional, me permite
escarnecer dos argumentos de alguns doutores. No terreno do pensamento, seria
mais decente e lógico que buscassem sustentar a legitimidade, nunca a
legalidade!, da violência a que aderiram seus clientes — por absurdo que pareça
— do que apelar, para defendê-los, aos fundamentos do tal Estado de Direito. A
razão é simples: aquela gente só partiu para a ação direta, para o
quebra-quebra, para a pauleira, porque não acreditava, e não acredita, nas
garantias e nos valores com os quais tenta agora se defender.
Se a polícia, como diziam e dizem esses valentes, é só a
expressão armada de um estado autoritário e fascista; se a Justiça já não serve
de espaço de arbitragem de demandas; se os Poderes instituídos, enfim, existem
para esmagar o que consideram ser a sua liberdade, que sentido faz pedir que os
supostos algozes compreendam as razões de suas supostas vítimas?
Nessa hora, um apressadinho já se ajeita na cadeira: “Ah,
então os perseguidos políticos nas ditaduras não deveriam nem mesmo ter um
advogado, porque estariam fazendo justamente o que você diz: apelando a uma
instância cuja legitimidade questionam…”. Pois é: chegamos ao busílis da coisa,
ao cerne da questão: vivemos num regime democrático, não numa tirania.
Esse regime tem muitas imperfeições e vive sendo ameaçado
por correntes autoritárias. Mas ainda estamos numa democracia, sim, e a
Constituição e as leis que estão em vigor foram pactuadas. Num estado discricionário, quando o advogado
de um inimigo do poder apela à Corte, ele dá a sua contribuição pessoal para
denunciar o regime. A democracia, que os baderneiros tomam como falácia, é de
tal sorte tolerante que lhes permite apelar em nome dos fundamentos nos quais
eles próprios não acreditam.
Comprovadas as culpas dos que estão presos — e espero que os
foragidos sejam logo capturados —, resta à ordem democrática brasileira provar
a esses valentes que este é o regime em que é proibido bater, quebrar,
depredar, incendiar e… matar. E que seu lugar é a cadeia. Não necessariamente
para que aprendam alguma coisa. Mas para que saibam que nós aprendemos.
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