Karl Marx podia ter todos os defeitos do mundo, desde a
vigarice intelectual até as hemorróidas, mas ele sabia que a palavra
“proletário” significa “gente que trabalha” e não qualquer Zé-Mané. Ele
combatia o capitalismo porque achava que os ricos enriqueciam tomando o
dinheiro dos pobres, o que é talvez a maior extravagância matemática que já
passou por um cérebro humano, mas, reconheça-se o mérito, ele nunca confundiu
trabalhador com vagabundo, povo com ralé.
Alguns discípulos bastardos do autor de “O Capital”, uns
riquinhos muito frescos e pedantes, fundaram um instituto em Frankfurt com o
dinheiro de um milionário argentino e resolveram que valorizar antes o trabalho
honesto do que os vícios e o crime era uma deplorável concessão de Marx ao espírito
burguês. Usando dos mais requintados instrumentos da dialética, começaram
ponderando que o problema não era bem o capitalismo e sim a civilização, e
terminaram tirando daí a conclusão lógica de que para destruir a civilização o
negócio era dar força aos incivilizados contra os civilizados.
Os frankfurtianos não apostavam muito no paraíso socialista,
mas acreditavam que a História era movida pela força do “negativo” (uma
sugestão de Hegel que eles tomaram ao pé da letra), e que portanto o mais belo
progresso consiste em destruir, destruir e depois destruir mais um pouco.
Tentar ser razoável era apenas “razão instrumental”, artifício ideológico
burguês. Séria mesmo, só a “lógica negativa”.
A destruição era feita em dois planos.
Intelectualmente, consistia em pegar um a um todos os
valores, símbolos, crenças e bens culturais milenares e dar um jeito de provar
que no fundo era tudo trapaça e sacanagem, que só a Escola de Frankfurt era
honesta precisamente porque só acreditava em porcaria – coisa que seu
presidente, Max Horkheimer, ilustrou didaticamente pagando salários de fome aos
empregados que o ajudavam a denunciar a exploração burguesa dos pobres. Isso
levou o nome hegeliano de “trabalho do negativo”. A premissa subjacente era:
-- Se alguma coisa sobrar depois que a gente destruir tudo,
talvez seja até um pouco boa. Não temos a menor idéia do que será e não temos
tempo para pensar em tamanha bobagem. Estamos ocupados fazendo cocô no mundo.
No plano da atividade militante, tudo o que é bom deveria
ser substituído pelo ruim, porque nada no mundo presta e só a ruindade é boa. A
norma foi seguida à risca pela indústria de artes e espetáculos. A música não
podia ser melodiosa e harmônica, tinha de ser no mínimo dissonante, mas de
preferência fazer um barulho dos diabos. No cinema, as cenas românticas foram
substituídas pelo sexo explícito. Quando todo mundo enjoou de sexo, vieram
doses mastodônticas de sangue, feridas supuradas, pernas arrancadas, olhos
furados, deformidades físicas de toda sorte – fruição estética digna de uma
platéia high brow. Nos filmes para crianças, os bichinhos foram substituídos
por monstrengos disformes, para protegê-las da idéia perigosa de que existem
coisas belas e pessoas boas. Na indumentária, mais elegante que uma barba de
três dias, só mesmo vestir um smoking com sandálias havaianas -- com as unhas
dos pés bem compridas e sujas, é claro. A maquiagem das mulheres deveria
sugerir que estavam mortas ou pelo menos com Aids. Quem, na nossa geração, não
assistiu a essa radical inversão das aparências? Ela está por toda parte.
Logo esse princípio estético passou a ser também
sociológico. O trabalhador honesto é uma fraude, só bandidos, drogados e
doentes mentais têm dignidade. Abaixo o proletariado, viva a ralé. De todos os
empreendimentos humanos, os mais dignos de respeito eram o sexo grupal e o
consumo de drogas. De Gyorgy Lukacs a Herbert Marcuse, a Escola de Frankfurt
ilustrou seus próprios ensinamentos, descendo da mera revolta genérica contra a
civilização à bajulação ostensiva da barbárie, da delinqüência e da
loucura.
Vocês podem imaginar o sucesso que essas idéias tiveram no
meio universitário. Desde a revelação dos crimes de Stálin, em 1956, o marxismo
ortodoxo estava em baixa, era considerado coisa de gente velha e careta. A
proposta de jogar às urtigas a disciplina proletária e fazer a revolução por
meio da gostosa rendição aos instintos mais baixos, mesmo que para isso fosse
preciso a imersão preliminar em algumas páginas indecifráveis de Theodor Adorno
e Walter Benjamin, era praticamente irresistível às massas estudantis que assim
podiam realizar acoincidentia oppositorum do sofisticado com o animalesco. Com toda a certeza, a influência da Escola
de Frankfurt, a partir dos anos 60 do século passado, foi muito maior sobre a
esquerda nacional que a do marxismo-leninismo clássico.
Sem isso seria impossível entender o fenômeno de um partido
governante que, acuado pela revolta de uma população inteira, e não tendo já o
apoio senão da ralé lumpenproletária remunerada a pão com mortadela e 35 reais,
ainda se fecha obstinadamente na ilusão de ser o heróico porta-voz do povão em
luta contra a “elite”.
Dois anos atrás, já expliquei neste mesmo jornal (v. A Luta de Classes no Brasil) que uma falha estrutural
de percepção levava a esquerda nacional a confundir sistematicamente o povo com
o lumpenproletariado, de tal modo que, favorecendo o banditismo e praticando-o
ela própria em doses continentais, ela acreditava estar fazendo o bem às massas
trabalhadoras, as quais, em justa retribuição de tamanha ofensa, hoje mostram
detestá-la como à peste.
O Caderno de Teses do V Congresso do PT é um dos documentos
mais reveladores que já li sobre o estado subgalináceo a que os ensinamentos de
Frankfurt podem reduzir os cérebros humanos.
(Publicado no Diário do
Comércio.)
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