segunda-feira, 9 de maio de 2016

A situação da esquerda, segundo Marta Harnecker


Marta Harnecker, psicóloga, escritora e jornalista chilena, é uma das principais investigadoras e divulgadoras dos pensamentos e experiências detransformação social de nosso continente. Após a deposição de Allende, passou a viver em Cuba, onde se casou com Manuel Piñero Losada – já falecido -, uma das lideranças do PC Cubano. Atualmente, com um segundo matrimônio, vive no Canadá.


É autora de uns 40 livros, entre os quais “Conceitos Elementares do Materialismo Histórico”, com 61 edições e mais de um milhão de exemplares vendidos, tendo sido traduzido para o francês, português, inglês e grego.


Sua última obra – “Fazendo Possível o Impossível: A Esquerda no Umbral do Século XXI”, foi publicada no México, Espanha, Cuba, Brasil, Itália, Portugal, Canadá e França.

É deste último livro o texto abaixo, resumido:


Estamos atravessando uma fase ultraconservadora. Vivemos um período de refluxo da humanidade. Não só fracassou o socialismo soviético, como o capitalismo demonstrou uma surpreendente capacidade para se adaptar às novas circunstâncias e para utilizar em benefício próprio os avanços da nova revolução técnico-científica, enquanto os países socialistas, depois de terem alcançado um notável desenvolvimento econômico, foram caindo na estagnação até acabarem no desastre que conhecemos. Ao que se acrescentam as dificuldades econômicas que começaram a sofrer os governos social-democratas europeus e os seus regimes de “estado de bem-estar”: detenção do crescimento econômico, inflação, ineficiência produtiva.


Devemos reconhecer que vivemos tempos angustiantes, plenos de confusão e de incertezas. A deterioração do nível de vida da maioria da população do planeta, incluindo setores cada vez mais amplos das camadas médias, que alguns têm denominado como globalização da pobreza, é alarmante; a ameaça do desemprego é uma preocupação presente tanto nos países pobres, como nos países desenvolvidos  – OBS: no Brasil, segundo os indicadores de órgãos de pesquisas, há 11 milhões de pessoas desempregadas -; a fragmentação social e organizativa parece ter atingido o seu nível máximo, enquanto os sonhos de construção de uma nova sociedade se reduziram à sua expressão mais tímida.


A deterioração do meio ambiente ameaça a sobrevivência das futuras gerações e a corrupção galopante produz um vasto efeito desmoralizador. Continua e continuará a estar presente o perigo da guerra desencadeada por diversos grupos que apelam para o terrorismo indiscriminado – OBS: citando apenas alguns exemplos, vide o denominado Estado islâmico na Síria e no Iraque, a Al-Shabab, na Somália, a Al-Qaeda, em todo o mundo -.
A ação política está órfã de modelos explicativos e orientadores, porque em sua maioria os velhos modelos foram derrubados, e os novos não conseguem demonstrar sua eficiência em termos de crescimento com eqüidade, e os esforços para inverter o retrocesso costumam desembocar na frustração e na impotência.


Torna-se mais urgente do que nunca uma opção alternativa se não estivermos dispostos a aceitar essa cultura integral do desperdício, material e humano que, não apenas gera lixo não-reciclável pela ecologia, mas também, resíduos humanos difíceis de reciclar socialmente, ao impelir grupos sociais e nações inteiras para o desamparo coletivo.
São enormes os desafios que se colocam à esquerda latino-americana, que está desconcertada e sem um projeto alternativo, pois está vivendo uma profunda crise que abrange três terrenos: o teórico, o programático e o orgânico.


A Crise Teórica


A crise teórica da esquerda latino-americana tem uma tripla origem. Em primeiro lugar, a sua incapacidade de elaborar um pensamento próprio. Analisa-se a realidade com parâmetros europeus. Por exemplo, considerava-se a América Latina como uma formação feudal, quando era capitalista dependente; ou aplicava-se o esquema de análise classista europeu a países que tinham uma população majoritariamente indígena, o que conduzia a desconhecer a importância do fator étnico-cultural.
Em segundo lugar, ela não foi capaz de realizar um estudo rigoroso das experiências socialistas e também não realizou uma análise séria das causas das suas derrotas.


Contudo, não há dúvida de que a explicação mais importante dessa crise teórica é a inexistência de um estudo crítico do capitalismo dos fins do Século XX. O capitalismo da revolução eletrônica, da informática, da globalização e das guerras financeiras.


Em que se modifica, por exemplo, o conceito de mais-valia – conceito central da análise crítica do capitalismo em Marx - com a introdução da máquina digital e da robótica, por um lado, e com o atual processo de globalização, por outro? Como afeta as relações técnicas e sociais de produção e as relações de distribuição e consumo a introdução das novas tecnologias no processo de trabalho? Que modificações sofreram tanto a classe operária e a burguesia numa era em que o conhecimento passa a representar um elemento fundamental das forças produtivas? Para onde vão a atual globalização e as suas conseqüências? Quem são os elementos que podem constituir uma base objetiva potencial para a transformação desse modo de produção?


A esquerda, em última análise, tem de reavaliar a teoria como uma arma imprescindível para a transformação social, destinando tempo à formação teórica, reconquistando quadros intelectuais, formando comunidades científicas de pesquisadores, e criando escolas populares permanentes de quadros.


A Crise Programática


A esquerda latino-americana vive uma profunda crise programática, que não é alheia à crise teórica acima descrita. Após a queda do socialismo soviético a esquerda teve grande dificuldade para conceber um projeto transformador que possa assumir os dados da nova realidade mundial e que permita fazer confluir num único feixe todos os setores sociais afetados pelo regime imperante. Há um excesso de diagnósticos e uma ausência terapêutica.

A esquerda, se quiser sê-lo, não pode definir a política como a arte do possível. A realpolitik tem de opor uma política que, sem deixar de ser realista, sem negar a realidade, vá criando as condições para transformá-la. Para a esquerda, a política deve consistir então na arte de descobrir as potencialidades existentes na situação concreta de hoje para tornar possível, amanhã, o que no presente parece impossível.

A Crise Orgânica


Além de viver uma crise teórica e programática, a esquerda também não conta com um sujeito político adequado aos novos desafios. Há um generalizado ceticismo em relação à política e aos políticos.



Essa crise da atual institucionalidade dos partidos de esquerda, exprime-se tanto na perda da sua capacidade de mobilização e atração perante as pessoas, e especialmente perante a juventude, quanto numa evidente disfuncionalidade das suas atuais estruturas, hábitos, tradições e maneiras de fazer política, com as exigências que a realidade social reclama de um ator político de caráter popular e socialista, em processo de renovação substancial.


Para levar adiante o processo de transformação social profunda, portanto, é necessária uma organização em que a análise política se assuma como uma síntese de um processo coletivo de construção de conhecimento, que integre tanto a experiência direta como o exame da realidade global a partir da teoria.


Isso implica a rejeição de duas teses extremas: a “vanguarda iluminada” e o “basismo”. A primeira concebe a instância política como a única capaz de conhecer a verdade: o partido é a consciência, a sabedoria; e a massa, um setor atrasado.


A tese oposta é o “basismo”. Este sobrevaloriza as potencialidades dos movimentos sociais. Supõe que esses movimentos são auto-suficientes. Rejeita indiscriminadamente a intervenção de qualquer instância política, e com isso contribui, muitas vezes, para levar água ao moinho da divisão do movimento popular.


A história de múltiplas explosões populares do Século XX demonstrou cabalmente que não basta a iniciativa criadora das massas para conseguir a vitória sobre o regime imperante. Os acontecimentos de Maio de 1968 na França são um dos muitos exemplos que corroboram esta afirmação.
Para que a ação política seja eficaz, para que as atividades de protesto, de resistência e de luta do movimento popular consigam os seus objetivos anti-sistêmicos, é necessário um sujeito organizador que seja capaz de orientar os múltiplos esforços que surjam espontaneamente, e de promover outros.

A cópia do modelo bolchevique conduziu a vários desvios. Reconhecendo a importância da organização política – alusão aos partidos políticos, às organizações político- militares e aos movimentos e frentes políticas – para conseguir os objetivos de transformação social, a esquerda marxista, porém, fez pouquíssimo para adequá-la às exigências dos novos tempos. Durante um longo período, isso teve muito a ver com a cópia acrítica do modelo bolchevique de partido, ignorando o que o próprio Lenin pensava a esse respeito.


O que a maior parte da esquerda latino-americana conheceu não foi o pensamento de Lenin em toda a sua complexidade, mas a versão simplificada dada por Stalin.


Lenin sempre concebeu o partido como o sujeito político por excelência da transformação social, como o instrumento para exercer a condução política da luta de classes – luta que se dá, sempre, em condições históricas, políticas e sociais específicas – e, por isso, considerava que a sua estrutura orgânica tinha de adequar-se à realidade de cada país, e modificar-se de acordo com as exigências concretas da luta.


Essas idéias precoces de Lenin foram ratificadas no III Congresso da Internacional Comunista, em 1921.



Todavia, a cópia acrítica do modelo bolchevique de partido levou a uma série de erros, desvios e faltas, que passamos a enumerar, cometidos pelos partidos comunistas da América Latina, com um rápido comentário relativo a cada um desses desvios, erros e faltas:


- Vanguardismo


Uma das atitudes mais negativas da esquerda marxista latino-americana e caribenha foi a de se auto-proclamar “vanguarda do processo revolucionário”, e muitas delas “a vanguarda da classe operária”, embora essa classe fosse quase inexistente em alguns desses países. Não compreenderam que o caráter de vanguarda de um processo não é coisa que se auto-proclame, mas sim que se conquiste na luta, e que não pode haver vanguarda se não houver uma retaguarda.


- Verticalismo e Autoritarismo


O estilo de condução verticalista – que se traduzia por pretender dirigir autoritariamente desde cima, enviando “para baixo” linhas de ação – era a prática habitual. Não havia uma preocupação em convencer as pessoas das propostas que se apresentavam. Isso conduzia a outro desvio: a tendência para ocupar cargos de direção nos movimentos sociais para controlá-los do topo, em vez de levar a cabo um paciente trabalho de base.

- Cópia de Modelos Exteriores


A maior parte das vezes, as elaborações estratégicas foram construídas não como resultado da procura de um caminho próprio adequado à especificidade do país, mas por meio da soma dos componentes estratégicos parciais de diferentes experiências revolucionárias de outras latitudes. Por exemplo: o que simboliza para os povos da América Latina a foice que figura na bandeira de muitos partidos comunistas? O que significa para os indígenas guatemaltecos o nome Ho Chi Minh e até o de Che Guevara?


- Teoricismo, Dogmatismo e Estrategismo


O teoricismo e o dogmatismo têm estado presentes nas mais diversas vertentes da esquerda: tanto nos partidos da esquerda tradicional como na autoproclamada esquerda revolucionária. A tendência era fazer análises teóricas de caráter geral, incapazes de explicar como funcionam os processos concretos. Pensou-se que se deveria fazer o caminho da unidade evitando as discussões teóricas, caindo, então, no praticismo, com a rejeição de todos os esforços de teorizar sobre a realidade.

Outro dos males que sofreu a esquerda – desta vez a esquerda revolucionária – foi o de estrategismo, pelo ual formulavam-se as grandes metas estratégicas, a luta pela liberdade nacional e pelo socialismo – mas não se fazia uma análise concreta sobre a situação concreta da qual se tinha de partir. Partia-se, quase sempre, da errada apreciação da existência de uma situação revolucionária em toda a América Latina e que bastaria uma centelha para incendiar a planície.

- Subjetivismo


Tem havido muito subjetivismo na apreciação da correlação de forças. Costuma acontecer que os dirigentes, movidos pelas suas paixões revolucionárias tendam a confundir os desejos com a realidade. Tende-se a subestimar as possibilidades do inimigo e, por outro lado, a superestimar as possibilidades próprias. Por outro lado, os dirigentes tendem a confundir o estado de espírito da militância mais radical com o estado de espírito dos setores populares da base. Também tem havido na esquerda uma tendência para se auto-enganar, para falsificar os dados das mobilizações, dos comícios, das greves, das forças de que dispõe cada organização, o que, depois, se projeta em linhas de ação incorretas, porque partidas de bases falsas.

- Concepção da Revolução como Assalto ao Poder


A esquerda em geral sempre teve uma concepção do Poder reduzida ao Poder do Estado, e a esquerda revolucionária concebia a revolução essencialmente como um assalto ao Poder do Estado e, portanto, concentrava seus esforços em criar condições para esse assalto, descurando outros aspectos da luta, entre os quais o trabalho de transformação cultural da consciência popular, tarefa que era relegada para depois da tomada do Poder.

- Insuficiente Avaliação da Democracia


Durante muitos anos as organizações de esquerda, influenciadas pela tônica que Lenin colocou na ditadura do proletariado, desdenharam outras de suas considerações: que o socialismo deveria ser concebido como a sociedade mais democrática, ao contrário da sociedade burguesa, que só é democrática para uma minoria. Em lugar de reivindicar a democracia, nos seus discursos e na sua propaganda punha-se a ênfase na ditadura do proletariado acabando, assim, por negar o próprio valor da democracia.

- Consideração dos Movimentos Sociais como meras Correias de Transmissão


Sempre existiu uma tendência em reconhecer as organizações sociais como elementos manipuláveis: simples correias de transmissão da linha do partido. Essa posição apoiava-se na tese de Lenin em relação aos sindicatos quando do início da Revolução Russa. Essa tese, mal digerida, foi aplicada pelas esquerdas em seu trabalho com o movimento sindical, primeiro, e depois com os movimentos sociais. A direção do movimento, os cargos nos organismos de direção, a plataforma de luta, enfim, tudo era resolvido pelas direções partidárias e depois mandava-se para baixo a linha a seguir.


- Visão do Cristianismo como Ópio do Povo


Até a década de 60, a esquerda latino-americana e caribenha, aplicando de forma mecânica a apreciação de Marx da religião da sua época como o ópio do povo, identificou o cristianismo com a hierarquia da Igreja Católica. Mas as transformações que começaram a ocorrer a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965) e que culminam com a Conferência de Medellin em 1968, com o surgimento da Teologia da Libertação e o movimento das Comunidades Cristãs de Base – aos quais tem que se acrescentar o gesto do sacerdote Camilo Torres, “que morre combatendo na guerrilha do ELN, na Colômbia – vão alterando essa injusta apreciação do papel que podem representar os cristãos na revolução” (Martha Harnecker, “Cristãos e Indígenas na Revolução”. Editora Século XXI, México).


- Desconhecimento do Fator Étnico-Cultura


A esquerda viveu muitos decênios ignorando o fenômeno indígena. A aplicação do reducionismo classista ao campesinato indígena levava a considerá-lo uma classe social explorada que devia lutar pela terra como qualquer outro camponês, ignorando a importância do fator étnico-cultural que fazia desse campesinato um setor social duplamente explorado e com uma cultura ancestral de resistência ao opressor.


- Conclusão


Nos anos 70, com os duros golpes recebidos e o auge do processo revolucionário na América Latina, deu-se um rápido processo de amadurecimento entre os dirigentes da esquerda. Começou-se a ter consciência de todos esses erros e desvios. Todavia, a tomada de consciência nem sempre se traduz em prática política imediata, visto que se requer um certo tempo para superar hábitos  que marcaram a esquerda durante décadas e para que essas transformações sejam assimiladas pelos quadros intermediários e de base.


Contudo, parece necessário advertir que, por mais desvios e erros que tenham sido cometidos, não se trata de jogar tudo fora e começar do zero. Além de usar uma linguagem adaptada ao novo desenvolvimento tecnológico, é fundamental que a esquerda rompa com o velho estilo de pretender levar mensagens uniformes a pessoas com interesses diferentes. Não se pode pensar em massas amorfas. O que existe são indivíduos, homens e mulheres, que estão em diferentes lugares, fazendo coisas diferentes e submetidos a influências ideológicas diferentes.

Temos que ser capazes de individualizar as mensagens, tendo em conta que os métodos clandestinos de atuação perderam sua vigência com os processos de abertura democrática que a América Latina passou a viver, mas cumpre não abandonar os métodos de autodefesa e ter um bom serviço de informações para conhecer os passos do inimigo, a fim de preparar a tempo a contra-ofensiva.


Num mundo em que reina a corrupção, e que existe um crescente descrédito com os partidos políticos e com a política em geral, é fundamental que as organizações de esquerda se apresentem com um perfil ético claramente diferente, que sejam capazes de encarnar na vida quotidiana os valores que dizem defender e   que suas práticas sejam coerentes com seus discursos políticos.

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Carlos I. S. Azambuja é Historiador.

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