domingo, 20 de julho de 2014

Por que governos de esquerda fazem políticas “neo”-liberais?

Por Alberto Mansueti

Na Venezuela, Maduro e os chavistas discutem se devem aplicá-las ou não e na Argentina, Cristina sempre teve suas dúvidas. Porém, são políticas que desde há anos os governos de Ortega na Nicarágua, Santos na Colômbia, Correa no Equador, Humala no Peru, Morales na Bolívia, Tabaré e “Pepe” no Uruguai, e igualmente Lula e Dilma no Brasil, por exemplo, as aplicam.

“Neo” liberais significa mais ou menos inspiradas no Consenso de Washington (CdeW) dos anos 90, uma lista de “recomendações de política”, que na ocasião os burocratas do FMI e do Banco Mundial viram como “viáveis e sustentáveis”, quer dizer: aceitáveis pelos principais atores.

São 10, e se resumem assim: 1. Disciplina fiscal e orçamento em equilíbrio, 2. priorizar o gasto público: em medicina básica, educação primária, infra-estrutura, 3. impostos: baixar taxas para subir a arrecadação, 4. tipos de juros: livres, 5. taxa de câmbio: “competitiva”, 6. substituir barreiras quantitativas às importações por taxas alfandegárias e depois reduzi-las pouco a pouco até 10% ou 20% na média, 7. alentar todo o investimento estrangeiro direto, 
8. privatizar empresas estatais, 9. eliminar barreiras legais à entrada e saída nos mercados e 10. reforçar direitos de propriedade. Até aqui diz o CdeW.

As principais razões dos governos socialistas para fazer estas políticas são quatro:
(I) A primeira é que o marxismo econômico eles já fizeram: aplicaram-no até onde se podia, entre os anos 1930 e 1970 mais ou menos, em quase todos os países do mundo.

Marxismo econômico é aquele “Programa Mínimo” do “Manifesto Econômico” de 1848, redigido por Marx e Engels. Constava de dez pontos que convém lembrar: 1. a “reforma agrária”, 2. o imposto progressivo aos ingressos, 3. o imposto às heranças, 4. a estatização das grandes empresas e companhias estrangeiras, 5. o Banco Central com seu monopólio de emissão, 6. transportes do Estado, 7. empresas de propriedade estatal e indústrias e comércios sob o controle do governo, 8. leis salariais e sindicais, 9. imposto aos lucros extraordinários, 10. educação pública socializada.

Isto é comunismo, embora em “grau mínimo”, segundo Marx e Engels. Deve-se acrescentar a medicina socializada, ponto que eles viram “muito avançado” para um programa “mínimo”. E a questão é que já fizeram tudo isto, há anos, e muitas destas políticas estão vigentes e são vistas como normais, correntes, inclusive parte integral e intocável do sistema “capitalista”.

O “laissez faire” já não existe porque os socialistas o suprimiram há muito tempo e, em troca, impuseram uma ditadura estatal à economia, embora só até certo ponto: o ponto no qual já não podem mais “avançar” sem cair na tragédia do parasita que mata o organismo hospedeiro. Ir além seria exterminar 100% da produção, que quase passa nos anos 70 com o “cepalismo” [1], e por isso retrocederam nos anos 90: privatizaram segundo o CdeW, cedendo nos pontos 4 e 7 do Manifesto. Dois passos atrás, para depois ir três adiante, disse Lenin.

As esquerdas enfrentam o dilema do parasita: têm de comer, então alguém tem de produzir. Assim que ao menos “no momento”, como disse Chávez, os socialistas pactuaram com os mercantilistas, velhos e novos, respeitaram seus privilégios, em troca de seguir produzindo sob as condições ditadas pelos socialistas, que comem dos altos impostos que eles e a classe média pagam. E para isso, o CdeW serve.

(II) Segunda razão: as políticas do CdeW não são muito liberais, são só um remédio para os piores resultados do “cepalismo” dos anos 70, ou seja, o barril sem fundo das empresas estatais e a diluviana impressão de cédulas, cujos efeitos pretendiam “conter” com meios grosseiros: controles de preços, de câmbios e tipos de juros. Até aí. Porém, o CdeW não é incompatível com um “Grande Estado” educador, médico, banco-centralista e regulamentador. Não figura a tripla redução do governo em funções, em poderes e em gastos, como seria se de verdade a lista tivesse sido inspirada no liberalismo clássico.

É um ticket de saída daquele velho estatismo selvagem de Allende, Cámpora, J. J. Torres, Velazco Alvarado e Alan García I (primeiro mandato), e de entrada a um estatismo mais “prolixo”, social-mercantilista: no contexto do “Pacto Social” com os empresários mercantilistas, nacionais ou estrangeiros. Por isso já nos anos 90 estas políticas foram seguidas pelos líderes e governos surgidos dos partidos nacional-populistas e de esquerdas, todos anti-liberais, como o PRI no México, o APRA no Peru, o MNR e o MIR na Bolívia, o Peronismo na Argentina, etc. Porque o CdeW não tem nada de liberalismo! Deve-se chamar “Neo” mercantilismo, ou melhor ainda: “Neo” estatismo.

(III) A terceira razão é estratégica: adotando a esquerda oficialista, o CdeW desde o governo tira as bandeiras da oposição que, de per si já é muito inepta e incapacitada, mas desta maneira fica totalmente desorientada, paralisada e muda, catatônica, sem saber o que fazer, o que pensar nem o que decidir. Assim os presidentes do Foro de São Paulo são re-eleitos sem maior dificuldade.

(IV) Por fim a quarta: o CdeW é 100% compatível com o marxismo cultural, a prioridade nº 1 destas esquerdas de agora. O marxismo cultural é essa enorme tarefa destrutiva, embora já não da economia senão do casamento, da família (aborto, eutanásia, matrimônio homossexual, etc.), da religião, do “meio-ambiente”, da doutrinação na escola, enfim, todo esse “politicamente correto” do “Socialismo do Século XXI”... que é tema para outro artigo.

Tradução: Graça Salgueiro


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Alberto Mansueti é advogado e cientista político – http://albertomansueti.com/.

Nota da tradutora:

[1] Cepalismo refere-se à CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), fundada pela resolução 106 do Conselho Econômico e Social da ONU de 25 de fevereiro de 1948, tendo seu nome alterado em 27 de julho de 1948 pata Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe.  A CEPAL é uma das cinco comissões regionais das Nações Unidas e sua sede é em Santiago do Chile. Foi fundada para contribuir com o desenvolvimento econômico da América Latina, coordenar as ações dirigidas à sua promoção e reforçar as relações econômicas dos países entre si e com as demais nações do mundo. Posteriormente seu trabalho se ampliou aos países do Caribe e se incorporou o objetivo de promover o desenvolvimento social.

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