segunda-feira, 28 de julho de 2014

"O AUTO DE DILMA, A COMPADECIDA"

Por Celso Arnaldo Araújo

Eu diria que o nome de Suassuna, no Twitter de Dilma, foi “assassuanado”. Dilma não perdoa: é serial killer, feroz e implacável, de palavras, nomes, termos, ditados, ditos, máximas, aforismos – enfim de tudo o que se chama, se diz, se fala e se escreve. Aliás, repare na tuitada: para ela, Auto da Compadecida é livro – não uma peça de teatro.

É uma Dilma que não falha nunca: a Dilma Compadecida.

Assim como Quarta-feira de Cinzas se segue à terça-feira de Carnaval, Dilma Compadecida sobrevoa áreas inundadas em qualquer parte do Brasil, com ar compungido, captado, na janelinha, pelos cinegrafistas do Planalto – louca para voltar à secura de Brasília, onde absolutamente nada será feito para minorar o sofrimento das vítimas e evitar outra tragédia na próxima enchente. Além das promessas encharcadas de sempre.

E essa previsibilidade de falsos compadecimentos se materializa numa segunda frente: o obituário de personalidades, na forma de notas de pesar sistemáticas assinadas pela presidente.

Não faz isso por desejo dela, é claro, mas instruída pela marquetagem do Palácio, que conhece bem o impacto popular causado por uma presidente solidária na morte e na vida, e severa – não Severina.

Dilma, por certo, não conhece ou mal conhece a maior parte dos pranteados nas notas oficiais. Mas finge conhecê-los com intimidade quase familiar, nas mensagens escritas por assessores que ela avaliza com a chancela da Presidência.

Quando morreu Dominguinhos, escreveram para ela assinar:

“O Brasil perdeu ontem José Domingos de Moraes, o Dominguinhos”.

Nem o mais apaixonado fã da música de Dominguinhos jamais ouviu ou leu seu nome de batismo citado na íntegra – muito menos Dilma. Mas o obituarista do Planalto, por um instante, se transformou em escrivão de cartório de registro.

Não é de Dilma, mas tudo parece ter um toque de Dilma, em seu desprezo pela lógica e pelo sentido das coisas, mesmo a sete palmos do chão.

O mais famoso obituarista da imprensa brasileira, Antônio Carvalho Mendes, o Toninho Boa Morte, escreveu necrológios para o Estadão por quase 40 anos ─ até que um colega escrevesse o dele, na mesma seção. Apesar da rotina mortal, tinha recursos estilísticos para, de vez em quando, sair do terreno raso das platitudes necrológicas. Num intervalo de meses, faleceram Julio de Mesquita Filho e seu filho, Luiz Carlos Mesquita. Toninho começa assim o obituário deste: “Mais uma vez, a morte entrou-nos porta adentro”.

A criatividade, mesmo parnasiana, não é um auto de Dilma Compadecida. Ela assina notas fúnebres feitas à sua imagem e semelhança, enterrando, de cara, qualquer chance de inteligência, sinceridade e oportunidade.

Começa sempre com um clichê terminal – que, em alguns casos, afronta o próprio talento do falecido, como no mais recente, antes de “Suassuana”.

“A literatura brasileira perde um grande nome com a morte de João Ubaldo Ribeiro”.

Outras aberturas de mensagens de pesar atribuídas a Dilma, extraídas da seção “Notas Oficiais” do Portal do Planalto:

“O Brasil sofre uma profunda perda com a morte de João Filgueiras Lima, o Lelé, um dos nossos mais brilhantes arquitetos”.

“É com sentimento de profunda tristeza que recebo a notícia da morte do cantor Jair Rodrigues”.

“Foi com tristeza que soube da morte de dom Tomás Balduíno, incansável lutador das causas populares”.

“Foi com tristeza que soube da morte do escritor colombiano Gabriel García Márquez”.

“Foi com tristeza que tomei conhecimento da morte de José Wilker”.

“Foi com tristeza que tomei conhecimento da morte do senador João Ribeiro”.

“Foi com tristeza que recebi a notícia da morte do amigo e companheiro Jacob Gorender”.

“Foi com pesar que soube da morte de Norma Bengell, uma das principais atrizes do cinema brasileiro”.

Por sorte, não escreveram Benguel – como era costume em parte da imprensa.

Mas Ariano, acredito, ficará uma onça com o Suassuana de Dilma.


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