terça-feira, 7 de julho de 2015

O fim da velha ordem na República Democrática Alemã - RDA

“Em minha experiência, a eficácia de um Serviço depende muito mais daqueles que recebem a sua Informação, prestando atenção a ela quando contradiz suas próprias opiniões”. (Markus Wolf, livro “O Homem sem Rosto” editora Record, 1997)

Em seu livro “O Homem sem Rosto”, Markus Wolf  que durante 30 anos foi chefe do HvA-Die Hauprverwaltung Aufkdärung (Administração Central de Informações), mais conhecido como Stasi, narra, de uma posição privilegiada, o fim da Velha Ordem na Alemanha Oriental, iniciada em 9 de novembro de 1989 com a queda do Muro de Berlim e consumada em 3 de outubro de 1990, com o fim da Alemanha Oriental. Assim, no decorrer de uma noite, a Velha Ordem, mundo ao qual muitos dedicaram o trabalho de suas vidas, como Markus Wolf, desapareceu e, doravante, todos teriam que se acostumar com um novo mundo que só conheciam como “o inimigo que deveria ser destruído”. Muitos se sentiram na situação de refugiados dentro de seu próprio país. Refugiados de uma utopia destruída.

A constituição do sindicato independente Solidarinosc (Solidariedade), na Polônia, em 1980, sob a liderança de Lech Walesa, enviou ondas de choque a todo o bloco oriental da Europa. Elas foram agudamente sentidas pelo país vizinho imediato da Polônia, a RDA. Temia-se que os levantes de operários pudessem cruzar a fronteira, o que era especialmente perturbador para a liderança comunista, pois colocariam em questão o papel do “partido da classe operária” como representante de todos os trabalhadores.

HvA, desde o início dos anos 70, possuía informações sobre a disseminação da insatisfação na Polônia, todavia as autoridades polonesas não levaram a sério os avisos que lhes foram transmitidos sobre os preparativos para a agitação.

Solidariedade era considerado pelo HvA uma organização revolucionária que subvertia os critérios convencionais dos dissidentes europeus orientais, de que a estabilidade econômica e social deveria ser a base para a realização de reformas. Contrariamente, os operários poloneses rebelados ansiavam por um confronto com o Estado comunista que, por sua vez, demonstrava que carecia de autoconfiança para revidar. A imposição da lei marcial pelo general Wojciech Jaruzelski, em dezembro de 1981, apenas retardou um processo que tinha uma dinâmica própria.

No início de 1983 o HvA recebeu de um agente “toupeira” infiltrado na OTAN, um deprimente informe sobre a situação do Pacto de Varsóvia: uma cópia microfilmada de um estudo da OTAN sobre o equilíbrio de poder global Leste-Ocidente. Tratava-se de uma magistral análise da fragilidade do sistema soviético, dirigido pelos “cabeças de concreto” (como eram chamadas zombeteiramente as lideranças dos partidos comunistas do Leste-Europeu) e seu declínio em eficiência militar e poder econômico.

Na RDA, as insatisfações políticas e sociais que já minavam o país começavam a penetrar nas espessas paredes do Ministério da Segurança do Estado. E essas insatisfações eram comentadas durante as saunas realizadas pelos oficiais do HvA (um dos poucos locais onde se podia conversar abertamente). Comentários sobre as desavenças entre Anatoly Chernenko, então Secretário-Geral do PC Soviético, e Eric Honecker, seu homólogo no PC da RDA (oficialmente conhecido como PSUA-Partido Socialista Unificado da Alemanha), pois Chernenko desconfiava das abordagens entre Honecker e Helmuth Kohl (1º Ministro da RFA) e receava que os alemães ocidentais estivessem tentando criar uma unidade nacional pangermânica que desbancaria a solidariedade socialista. Nesse sentido, era um fato conhecido pela camada dirigente do HvA que Chernenko proibira Honecker de ausentar-se da RDA para uma visita oficial a Bonn, como estava programada!

Em virtude disso, Erich Honecker viu-se obrigado a executar uma súbita meia-volta perante o Ocidente, declarando que “o clima meteorológico geral” não era propício a uma reunião de cúpula entre as Alemanhas, e que ela deveria ser suspensa.

As lideranças reformistas da Alemanha Oriental encararam a ascensão de Gorbachev ao cargo de Secretário-Geral, em virtude da morte de Chernenko, em março de 1985, como uma mudança notável e bem-vinda e uma possível ruptura com o passado que havia feito tanto mal ao socialismo em termos de incompetência, ignorância, auto-exaltação, bem como da forma com que foram arrancadas as raízes dos pensamentos e sentimentos das pessoas comuns, se bem que Gorbachev só se tornou Secretário-Geral depois de manter a boca fechada sob três antecessores.

Logo a seguir, em novembro de 1986, Markus Wolf, por sua própria vontade, deixou o Serviço e se aposentou. No discurso de despedida de seus companheiros elogiou as reformas de Gorbachev na URSS, embora sabendo que a “perestroika” e a “glasnost” vinham sendo solenemente ignoradas pela nomenklatura que dirigia o PSUA, e incluiu em sua fala uma citação de Bertolt Brecht: “Um bom comunista tem muitas mossas em seu capacete. Algumas delas foram obras do inimigo”.

Em março de 1989, quando Markus Wolf lançou seu primeira livro – “A Troika” - as autoridades da RDA proibiram a circulação de um número da revista soviética “Sputinik”, que continha uma pesquisa recém-divulgada sobre os crimes de Stalin. O conflito tornou-se aberto, com a RDA censurando a URSS.

A partir de meados de 1989 estava em pleno auge o êxodo de alemães orientais para o Ocidente através das fronteiras húngaras recém-abertas. Em 18 de outubro de 1989 Eric Honecker caiu por ter perdido o respeito em seu círculo íntimo e ter sido instado a sair. Assumiu em seu lugar Egon Krenz, que era mal preparado para a tarefa hercúlea que tinha pela frente, embora tenha aparecido na TV fazendo uma algazarra conciliatória. Mas o tempo para as palavras havia se esgotado.

Em 28 de novembro de 1989 o 1º Ministro da RFA, Helmuth Khol publicou um programa de 10 pontos para a reunificação das Alemanhas e na RDA, nas manifestações, começaram a aparecer cartazes exigindo “Deutschland, Einig Vaterland”(Alemanha, uma Pátria).

Em 28 de setembro de 1990, 6 dias antes da reunificação da Alemanha, Markus Wolf e sua mulher partiram para a Áustria e daí, como não havia outra opção, para a União Soviética, com uma vaga esperança de que Gorbachev, como amigo de Helmut Kohl, apelasse em favor daqueles que trabalharam no Serviço. Na URSS, Markus Wolf não recebeu qualquer apoio de Gorbachev e o chefe da KGB, Kriuchkov, aconselhou-o a que não retornasse à Alemanha. Pela primeira vez na vida, lugares que sempre disseram sim diziam não a Markus Wolf.

Após o golpe fracassado contra Gorbachev, em agosto de 1991, Markus Wolf retornou à Alemanha, pois sentiu que os dias de Gorbachev estavam contados e não depositava confiança em seu provável sucessor, Boris Yeltsin.

Na Alemanha, Markus Wolf foi preso e enfrentou uma lista de acusações que enchiam 389 páginas. A principal delas detraição. Ou seja, seu sucesso havia sido a sua ruína. Estava no banco dos réus por ter dirigido o mais bem sucedido serviço de espionagem da Europa Oriental, acusado detraição por ter passado informações ao KGB. Seu advogado alegou, em sua defesa, que o BND (Serviço de Inteligência da Alemanha Ocidental) não havia sido menos diligente ao passar informações à CIA. Essa alegação foi indeferida pelo Juiz baseado em que as atividades do BND não estavam em pauta no Tribunal. A afirmação central do Promotor Público foi de que o HvA havia sido servo de um regime injusto. A acusação de traição equivalia a uma sentença de 6 anos de prisão.

Em sua defesa, Markus Wolf alegou que não poderia ser acusado de traição, pois apenas em 3 de outubro de 1990 havia se tornado um cidadão da RFA. Até então, fora cidadão de outro país, a RDA. Que país, pois, havia ele traído?

O processo de julgamento de Markus Wolf durou 7 meses. Em 6 de dezembro de 1993 ele foi julgado culpado e condenado a 6 anos de prisão. Em junho de 1995, no entanto, a Corte Constitucional Federal julgou que os agentes de informações da RDA não podiam ser acusados de traição e espionagem. Assim, a condenação de Markus Wolf foi cancelada e ele foi libertado.

Durante o seu julgamento, Markus Wolf disse à Corte:“Nenhum processo legal pode iluminar um período de História rico em contradições, ilusões e culpas (...). O sistema no qual vivi e trabalhei foi filho de uma utopia que, desde o início do Século XIX, foi a meta de milhões de pessoas, incluindo notáveis pensadores, que acreditaram na possibilidade de livrar a humanidade da repressão, exploração e guerra. Esse sistema fracassou porque não era mais apoiado pelas pessoas que viviam dentro dele. E, mesmo assim, insisto que nem tudo nos 40 anos de história da RDA foi ruim e que merece ser apagado, e que nem tudo no Ocidente foi bom e justo. Este período de sublevação histórica não pode ser encarado adequadamente por meio de clichês de um ‘Estado Justo’, por um lado, e um ‘Estado Injusto’, por outro”.

A seguir um telegrama da agência de notícias EFE, divulgado em 12 de agosto de 2007, um domingo:

Havia ordem para disparar no Muro de Berlim, segundo documento

Faltando pouco tempo para o 46º aniversário da construção do Muro de Berlim, surgiu o primeiro documento que demonstra que existia uma ordem explícita de disparar contra as pessoas que tentassem fugir da República Democrática Alemã (RDA).

O documento encontrado em uma dependência dos arquivos da Stasi - a Polícia secreta da RDA - em Magdeburgo, data de 1º de outubro de 1973 e está dirigido a uma unidade especial infiltrada nas brigadas fronteiriças, cuja missão era evitar a fuga dos próprios soldados, algo que ocorria freqüentemente. 

"Não duvidem em fazer uso das armas, nem sequer se a transgressão fronteiriça ocorrer com mulheres e crianças, algo que os traidores utilizam com freqüência", diz o texto da ordem, publicada hoje pela imprensa alemã. 

No documento se ressalta que "é dever" de todo membro dessa unidade responder à "astúcia" dos que querem fugir mediante a "detenção" ou "liquidação". 

Trata-se da primeira vez que surge uma ordem explícita escrita de disparar contra quem tentava atravessar o Muro de Berlim. 

Segundo o porta-voz dos arquivos da Stasi, Andreas Schulze, em entrevistas a vários jornais, oficialmente as leis da RDA apenas contemplavam o uso de armas como "última medida". 

Os dirigentes da RDA sempre negaram a existência de uma "ordem de disparar". 

A ordem secreta de 1973 demonstra, segundo Schulze, que "a história da RDA ainda não terminou de ser contada". 

Até agora não há nem sequer certeza sobre o número exato de pessoas que morreram ao tentar fugir da Alemanha Oriental. 

Segundo os responsáveis pelo Museu do Muro em Berlim, o número de mortos chega a 1.200. 

A promotoria de Berlim confirma cerca de 270 mortes. 

Em 13 de agosto de 1961, o governo da RDA deu a ordem de erguer um muro entre a parte oriental e a ocidental da cidade, que dividiu a Alemanha até sua queda, em novembro de 1989. 

Como todos os anos, amanhã acontecerão diversos atos para lembrar as vítimas, que incluem, por exemplo, uma oferenda floral do prefeito governador, Klaus Wowereit, na Bernauer Strasse, então um dos pontos mais chamativos da divisão, pois eram os próprios edifícios dessa rua que faziam as vezes de muro. 

Quando o muro começou a ser erguido, muitos moradores dessas casas se atiraram ao vazio para cair na parte ocidental: alguns sobreviveram, outros morreram. (EFE)    


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Carlos I.S. Azambuja é Historiador.

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