Por Emerson Rogério de Oliveira - Jornal O SUL
Relembro um fato inédito que chamou a atenção dos presentes
à cerimônia de entrega de medalhas, realizada no dia 25 de Agosto de 2005, por
ocasião das comemorações do Dia do Soldado, em Brasília. Com a presença de
Ministros de Estado, Comandantes das Forças Armadas, convidados e familiares,
foi entregue a Medalha do Pacificador. Depois do dispositivo pronto, um senhor
idoso, apoiado em uma bengala, vestindo roupas escuras e gravata preta,
portando em seu peito a Medalha do Pacificador, atravessou toda a frente do
dispositivo até o local onde estava a autêntica espada do Duque de Caxias. Com
lágrimas nos olhos, retirou a medalha do peito, elevou ao alto, à frente, à
esquerda e à direita. Depois de beijá-la, colocou-a no seu antigo estojo e a
depositou aos pés da coluna onde estava a espada de Caxias. Voltou, passou
silenciosamente pela frente do dispositivo, indo sentar-se na arquibancada de
cimento, diante do palanque.
Perguntado por que devolveu a medalha, respondeu que ela havia
sido desonrada e desprezada, em flagrante desrespeito à figura do insigne patrono do Exército, o Duque de Caxias, por já ter sido
distribuída a pessoas que não mereciam tal honra. Disse mais, que, se a recebeu
num ato solene, seria justo devolvê-la também num ato solene.
Esse senhor idoso é o coronel de Infantaria
Reformado/Inválido Cícero Novo Fornari. Na época tinha 74 anos, desses, 43 de
serviços prestados ao Exército e à Pátria.
A imprensa divulgou o fato em poucas linhas, mas eu o
destaquei pela sua atitude digna e corajosa em meu livro Trincheiras Abertas,
que lhe chegou às mãos por um amigo. Em dia recente, ligou-me de Brasília, onde
mora, para agradecer-me e perguntar-me se eu tomara conhecimento do que lhe
aconteceu depois daquele fato. Respondido que não, contou-me que, durante um
passeio com a esposa pelas ruas de Brasília, resolveu entrar em uma loja de
antiguidades – uma mistura de velhos objetos com brechó. Apoiado pela bengala
visitava prateleiras e balcões, olhando as mais variadas quinquilharias e
artigos ali expostos, parando em frente a uma redoma de vidro onde estavam
diversas medalhas militares, cuidadosamente alinhadas num feltro verde. Atento,
o dono da loja aproximou-se, cumprimentou-o e passou a discorrer sobre o
histórico das medalhas, as suas origens, quem as mereciam..., e, por fim,
perguntou se ele desejava comprar uma. Apesar de não ter obtido resposta, sabia
que iria negociar com aquele homem calado, pois já vira aquele brilho nos olhos
de muitos clientes. Abriu a tampa da redoma e continuou com a explicação,
mostrando-lhe a medalha da Primeira Guerra Mundial, da Segunda, do Serviço
Amazônico...
Tentava
cativar aquele cliente que parecia paralisado, que ainda não abrira a boca, mas
também não tirara o brilho dos olhos, e, então, o vendedor apontou o dedo para
uma Medalha do Pacificador e perguntou se ele lembrava do caso daquele coronel
do Exército que devolveu a sua Medalha do Pacificador numa cerimônia em
Brasília, depositando-a junto à espada de Caxias, sob o olhar e o silêncio dos
presentes.
O coronel levou um
choque. Ergueu a cabeça para aquele homem gentil e educado, que evocava
lembranças de um fato da sua vida.
Valeu-se da bengala para melhor firmar as pernas trêmulas das muitas
jornadas, e contendo a emoção falou pela primeira vez desde que entrara naquela
loja: "Não me lembro, mas deve ter sido um velho "gagá", meio
maluco, pra fazer isso!"
Surpreso, o dono da loja retrucou-lhe com veemência, dizendo
que ele estava enganado, pois o coronel era um homem honrado e tomou uma
atitude digna naquele dia, uma vez que essa medalha passou a ser concedida a
pessoas que não preenchiam os requisitos para tal, perdendo, assim, o seu
valor.
O coronel sorriu, mostrou-lhe a identidade, e disse-lhe:
"Pois saiba o senhor que esse coronel está à sua frente. Fui eu quem
devolveu a medalha".
O coitado do homem ficou pasmo, olhou para a identidade,
olhou para o coronel e, num gesto largo e espontâneo, abraçou-o. Imediatamente
pegou a medalha, empertigou-se, esboçou um gesto solene e prendeu-a no peito do
coronel, dizendo-lhe: "Ela é sua! Estou devolvendo-a para o lugar de onde
nunca deveria ter saído".
A surpresa agora era
do velho e experiente militar. Quis impedir-lhe o gesto, mas não conseguiu.
Tentou pagar-lhe o valor da medalha, também não conseguiu... E o vendedor, com
um sorriso largo, disse-lhe: "Coronel, o senhor mereceu essa medalha pelo
seu trabalho e dedicação à Pátria. Estou feliz por devolvê-la".
Os dois velhos emocionados se abraçaram. O coronel
agradeceu-lhe, juntou-se à mulher e, com passos lentos, auxiliados pela
bengala, retirou-se da loja, levando a sua Medalha do Pacificador no peito.
Certamente também levava os olhos marejados.
Atrás dele, um homem feliz pelo resgate que fizera naquela
tarde observava-o partir, tendo a certeza de que aquele foi o seu melhor
negócio do dia.
Gesto isolado, sem pompa e sem testemunhas. Mas nobre e
grandioso, porque esculpido na dignidade das suas atitudes, provando que os
valores morais são cultuados por homens, não por sombras.
Nem tudo está perdido.
Fonte: A Verdade Sufocada
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Emerson Rogério de Oliveira é Militar Reformado e Escritor
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