Por Guilherme Inojosa
Passado quase um século marcado por uma república mantida à
base da fraude, duas ditaduras e uma experiência republicana repleta de
instabilidades políticas, o Brasil inaugurou, em 1985, a sua Nova República,
como um verdadeiro marco em defesa da estabilidade institucional e do
desenvolvimento econômico-social. Um dos principais pontos desse novo
procedimento democrático foi a instauração da urna eletrônica, tratada como uma
evolução da democracia que estabeleceria agilidade, modernidade e segurança aos
milhões de eleitores do país na escolha de seus governantes. Infelizmente, com
uma análise mais apurada, chegaremos à conclusão de que esse pensamento se dá
muito mais mais como uma forma de conforto psicológico do que pela real
segurança existente na nossa urna eletrônica.
Nossa primeira experiência democrática eletrônica se deu em
Santa Catarina – sete anos após a experiência indiana, o que impediu o nosso
reconhecimento da paternidade do dispositivo. A urna eletrônica foi instaurada
em maior escala no país pela primeira vez nas eleições de 1996, em mais de 50
municípios, e implantada em todas as regiões do país nas eleições de 2000. Com
a implementação em larga escala, a discussão sobre a real segurança do modelo
por especialistas em informática se tornou inevitável.
O primeiro relatório sobre o assunto foi o Relatório Unicamp, elaborado por professores da instituição. Recebeu conclusões tão
ambíguas sobre o seu resultado que outros estudos sobre o caso foram
indispensáveis: o relatório COPPE (encomendado pelo PT a professores da UFRJ,
com resultados inconclusivos sobre a segurança), o relatório SBC (encomendado
pelo TRE e elaborado por professores da UFMG e da UFSC, cujo diagnóstico tratou
da possibilidade de identificação física do votante e da dificuldade na
transparência e auditabilidade), o relatório BRISA (mantido em sigilo por
muitos anos, cujo resultado expôs a falta de atendimento aos parâmetros
internacionais de transparência pelo principal engenheiro por trás da urna
eletrônica), o relatório CMTES (que diagnosticou que o sistema de DRE utilizado
pelo Brasil possui defeitos sanáveis), desmentido pelo relatório CMIND (que
demonstrou que o sistema brasileiro não se atenta às normas internacionais de
segurança), o Relatório Alagoas-2006 (de idoneidade dúbia, por ser encomendado
pelo candidato derrotado nas eleições a um professor do ITA, e atesta uma
possibilidade de fraude nas eleições do estado) e o Relatório FACTI-CENPRA
(encomendado pelo TSE e ainda mantido em sigilo).
O estudo mais polêmico sobre o tema, entretanto, foi o
Relatório UNB (realizado por uma equipe de professores da instituição ao TSE).
O relatório atesta a possibilidade de quebra do sigilo e uma possível
adulteração dos votos. Em apenas um teste, conseguiu quebrar não apenas a
suposta existência de um sigilo dentro das eleições no Brasil, como demonstrar
que a transparência e auditabilidade se encontram prejudicadas com esse
sistema. O TSE, como de praxe, minimizou os efeitos e afirmou que uma simples melhora
do algoritmo poderia acabar com estes problemas. Resta saber como confiar em um
aparelho cujo próprio tripé (sigilo, transparência e auditabilidade) não são
respeitados ou, na melhor das hipóteses, são no mínimo de duvidosa apuração.
E essa falta de segurança não é presente apenas no plano
teórico. Na prática, provavelmente o caso mais notório tenha sido de um hacker
de 19 anos que assumiu ter executado fraudes nas eleições municipais do Rio deJaneiro, a fim de beneficiar determinados candidatos em detrimento de outros. E
esse tampouco é um problema restrito ao Brasil. Nas eleições de 2000 dos
Estados Unidos, que elegeu George W. Bush, houve fraude eleitoral no Condado de Volusia, na Florida - não por acaso, o estado que definiu a eleição mais conturbada
da história do país.
Tendo em vista que a própria Constituição Federal afirma
como cláusula pétrea o voto direto, secreto e universal, a mera dúvida sobre a
existência dessa violação do sigilo já seria motivo suficiente para, no mínimo,
questionarmos se a urna eletrônica seria realmente o melhor instrumento para se
decidir uma eleição. E a situação apenas se agrava ao constatarmos que essa
dúvida está amparada por relatórios de especialistas no assunto. Quando a
instância jurídica máxima da justiça eleitoral, a qual deveria zelar pela
lisura, ignora este problema e sequer se dispõe a fazer novos testes públicos
em relação à segurança de seus aparelhos, a desconfiança só aumenta.
Até mesmo países que já importaram a urna eletrônica
brasileira perceberam que o aparelho não consegue oferecer uma eleição
verdadeiramente segura: como a justiça eleitoral paraguaia, a justiça holandesa
e a Corte Constitucional Alemã. Em todos esses casos houve o reconhecimento que
a lisura da eleição não pode ser tida através de um software de caráter
duvidoso.
Evidentemente, não proponho que se retorne ao período do
voto manual. É preciso que ocorra um aprimoramento no atual sistema de voto
eletrônico que o ampare às normas internacionais de auditoria. Em tese, o
Brasil adota o conceito de independência do software em sistemas eleitorais,
que afirma que modificações ou erros no software não podem acarretar em
modificações no resultado da eleição. Mas a própria urna eletrônica utilizada
no Brasil torna a aplicação desse conceito inviável.
A segunda geração de urnas eletrônicas consegue garantir uma
eleição célere, ao utilizar um sistema de duas etapas – na primeira o voto é
obtido eletronicamente, na segunda ele é impresso e depositado em uma urna para
eventual recontagem (que apenas é realizada se necessária e de acordo com a
legislação eleitoral de cada país que a adota). Esse sistema é utilizado na
Bélgica, Holanda, Alemanha, Argentina, Rússia, em boa parte dos Estados Unidos,
além de alguns estados do México e províncias do Canadá. É perceptível que os
exemplos citados correspondem a países das mais distintas dimensões e
desenvolvimento econômico. Não temos qualquer desculpa para não adotar o mesmo
modelo.
Mas se existia alguma esperança de caminharmos neste
sentido, o STF declarou inconstitucional o dispositivo da mini reforma do
Código Eleitoral que estabelecia a impressão do voto a partir das eleições de
2014. A alegação? A velha desculpa do sigilo dos votos e o reconhecimento
internacional quanto às benesses da urna eletrônica brasileira – mitos que se
perpetuam e que são derrubados numa breve análise de evidências. Dessa maneira,
estamos condenados a termos que insistir num sistema que, por mais útil que
tenha sido durante determinado momento, encontra-se em desconformidade com os padrões
internacionais de segurança das eleições, cujo resultado é um extenso número de municípios com suspeita de fraude nas urnas eletrônicas.
É impossível olharmos para um cenário político minimamente
confiável ao eleitor sem que tenhamos mecanismos de controle que façam sua
vontade soberana nas eleições. Um passo inevitável para que isso seja
possível é, sem dúvida, questionarmos e
extinguirmos a atual urna eletrônica brasileira – uma peça tão arcaica que
seria melhor aproveitada num museu ao lado de fósseis de dinossauros e
pirâmides egípcias.
Publicado no Liberzone.
Fonte: Mídia Sem Máscara
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