Por José Maria e Silva
O balanço da Copa é, sem dúvida, totalmente negativo. O país
gastou o que não podia; o investimento privado não veio; as obras estruturais
não saíram das planilhas; os voos ficaram aquém do esperado; o comércio vendeu
menos do que no Dia das Mães; obras foram feitas a toque de caixa,
irresponsavelmente, chegando a cair um viaduto em Belo Horizonte.
Definitivamente, a aposentadoria precoce do ministro Joaquim
Barbosa, do Supremo, comprova que o Brasil é um país sem heróis. E o Hino
Nacional Brasileiro, apropriado pelo futebol, é o retrato desse país “de
menor”, que jamais alcança a maioridade moral e se coloca diante da vida como
uma torcida organizada. A própria noção de patriotismo nada tem a ver com o
país em si, mas com uma disputa futebolística que ocorre de quatro em quatro
anos, embalada pelo Hino Nacional, que, por sinal, reflete, sem querer, os
defeitos da nação. Seus versos iniciais transformam o mero córrego do Ipiranga
num grande Nilo tropical, que banha a própria nação, e ainda enaltece o brado
retumbante do povo heróico que vive às suas margens.
Todavia, o poeta Osório Duque Estrada logo se contradiz e,
numa espécie de ato falho, chama o Brasil de “gigante pela própria natureza”,
como se confessasse que nele habita uma humanidade anã que não merece ser
cantada. A quase totalidade do Hino Nacional é uma loa às belezas naturais do
Brasil – um sestro deste país para inglês ver. Machado de Assis dizia que essa
“adoração da natureza” era “um modo de pisar o homem e suas obras” e ironizava
todos aqueles que viviam elogiando a natureza brasileira: “Eu não fiz, nem
mandei fazer o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei prontos.”
Como escrevi há quase dois anos, em artigo sobre a educação
brasileira datado de 19 de agosto de 2012, “se Machado de Assis encarnasse uma
de suas criaturas, o defunto-autor Brás Cubas, e se fizesse cronista póstumo
deste Brasil da Copa e das Olimpíadas, haveria de notar que as coisas pioraram
ainda mais e que já não é apenas a geografia do país que se conforma em ser
cartão-postal — hoje, é a própria alma da nação que se entrega feito natureza
morta ao olhar estrangeiro”.
Através do carnaval e do futebol, o brasileiro é convocado a
encarnar em sua própria alma a aparência que o mundo espera dele – um ser feito
exclusivamente de sentidos, em que o instinto é muito maior do que a razão. É
como se não fôssemos indivíduos, mas exóticas paisagens sociais. E a Copa do
Mundo, especialmente agora que está sendo realizada no país, reforça esse
papel. Daí a imagem recorrente do negrinho jogando bola nas ruas da periferia,
que se tornou o símbolo por excelência do Brasil, desde que o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva encarnou o espírito do general Emílio Médici e
decidiu quebrar o país para realizar a Copa do Mundo.
Chutando o futuro do País
A “Pátria de Chuteiras”, cantada por deslumbrados sociólogos
burgueses como Roberto DaMatta, tornou-se a essência do Estado nacional, capaz
de justificar até os R$ 25 bilhões gastos com a Fifa, a Globo e as
empreiteiras, dos quais mais de R$ 20 bilhões saíram diretamente dos cofres
públicos. É o futuro do país literalmente chutado por uma elite moralmente
pusilânime, que, incapaz de abdicar de sua cara diversão (90% dos que vão aos
jogos da Copa são das classes A e B), reforçam nas massas o gosto pelo futebol,
obrigando até as mulheres – mais de 50% da nação – a suportarem esse esporte
que nunca lhes disse nada, a despeito de elas fingirem que diz, sobretudo para
agradar maridos e namorados, como costuma acontecer com a alma feminina em
todos os setores da vida, desde a mulher bem-sucedida que sacrifica a profissão
para manter o casamento (coisa que um homem raramente faria) até a operária que
sacrifica a própria vida e a liberdade para sustentar o companheiro criminoso
na cadeia.
O indefectível negrinho de periferia com a bola nos pés,
presente em toda publicidade, reflete o arraigado preconceito das elites
letradas e endinheiradas, que, esquecendo-se de Cruz e Sousa e Lima Barreto,
tratam o negro como um ser descerebrado, incapaz de aparecer com um livro nas
mãos. Mas, de todas as nefastas propagandas do gênero, a que mais me indignou
foi a de um banco ou cartão de crédito em que um negrinho aparecia beijando a
bola com uma frase asquerosa que traduzia o gesto indecoroso: “Este amor é para
toda a vida”.
Não sei se a frase é exatamente essa e, felizmente, não
lembro o nome do anunciante, numa prova de que, ao menos comigo, essa
propaganda asquerosa não surtiu efeito. Mas a frase, em essência, transformava
a relação do negrinho com a bola num amor exclusivista e eterno, acima de
pátria e família, e não sei por que – aliás, sei muito bem, mas fica para outro
artigo – me remete à aposentadoria precoce do ministro Joaquim Barbosa, que, a
seu modo, encarnou aquele pequeno escravo da bola, ao literalmente chutar para
escanteio a sua missão no Supremo, ainda por cima alegando que ela lhe tirava a
privacidade para frequentar bares.
A imagem do negrinho beijando a bola e declarando a ela seu
amor eterno chega a ser moralmente criminosa. Ela reforça a ideia de que o
futebol é o único meio de ascensão dos negros pobres de periferia, quando, na
realidade, é justamente o contrário – o futebol é uma extensão virtual e
festiva da visão que os escravocratas tinham do negro, como se ele continuasse
não tendo alma e, ao invés de almejar ser um cérebro que pensa, se reduzisse a
um corpo que joga. O que, no caso de uma criança pobre, é quase uma condenação.
A ilusão do futebol e das artes
Assim como as artes (teatro, música, dança, literatura
etc.), o futebol é uma ilusão. Dependente do talento, da criatividade, muitas
vezes do acaso, o futebol é uma atividade de risco para quem resolve
transformá-lo numa profissão e dificilmente capacita alguém a ganhar a vida e
criar família, a não ser os raros craques que se tornam profissionais de
grandes times e, mesmo depois de aposentados, podem continuar vivendo à custa
dos milhões que ganharam nos poucos anos de atividade futebolística.
Assim como a maioria dos que se dedicam à literatura, ao
teatro, às artes plásticas raramente conseguirão viver dessas atividades,
também a maioria dos jogadores de futebol vegeta em clubes falidos, que atrasam
salários durante meses, levando o profissional a viver numa situação de crônica
instabilidade. Por isso, quando os filhos demonstram propensão para atividades
que dependem da criatividade, como as artes, os pais costumam ficar preocupados
e lhes aconselham que não abandonem os estudos e aprendam uma profissão.
Na biografia dos grandes artistas, são frequentes os casos
de resistência familiar à vocação artística. O que não deixa de ser bom, pois
ajuda a filtrar os verdadeiros talentos. Geralmente só se dispõe a fazer
grandes sacrifícios pela arte, sujeitando-se até à fome, quem está convicto de
seu próprio talento e trabalha diuturnamente para aprimorá-lo. Luiz Gonzaga, o
Rei do Baião, mesmo sendo filho de Januário, o maior sanfoneiro de “Taboca a
Rancharia, de Salgueiro a Bodocó”, como diz a canção “Respeita Januário”,
teve de vencer a resistência da mãe, praticamente fugindo de casa, para poder
dedicar-se à música.
Mas a dedicação integral à arte é sempre um risco, uma incerteza,
uma possibilidade de tudo dar errado. Na história da dupla Zezé di Camargo
& Luciano, que caiu na estrada muito cedo, há a trágica história do irmão
que fazia dupla com Zezé e morreu num acidente. Até o divino Mozart pagou um
alto preço por se dedicar visceralmente à sua arte, morrendo precocemente aos
35 anos sem ter alcançado a independência e a estabilidade financeira com que
tanto sonhava.
Os pais quase nunca aceitam que o filho se dedique apenas à
arte – geralmente exigem que ele nunca abandone os estudos, o que leva a
maioria a transformar em passatempo o talento, quando ele não é suficientemente
forte para enfrentar as intempéries. O mesmo ocorre – ou deveria ocorrer – com
o futebol, que não pode ser imposto às crianças como um ideal de vida, como
fazem, hoje, as propagandas governamentais e também das empresas privadas,
sempre ciosas de agradar o governo. O futebol é ainda mais incerto do que as
artes. Ele chega a ser nocivo para as crianças pobres, justamente as que mais
precisam do estudo se quiserem ser alguém na vida, uma vez que não dispõem nem
da herança familiar nem das relações sociais dos ricos.
É óbvio, por exemplo, que poesia não enche barriga de
ninguém. Mas um adolescente pobre que se interessa por poesia não precisa
largar a escola para se dedicar à sua arte. Pelo contrário, ainda que o amor
pela poesia possa indispô-lo com uma ou outra disciplina mais árida, geralmente
ele irá se destacar nas ciências humanas e, mesmo que nunca venha a ser um
Drummond, sempre poderá ganhar a vida com o jornalismo, a publicidade, o
magistério ou qualquer outra atividade em que seu talento com as palavras possa
ser bem empregado. O mesmo vale para o teatro, a música (especialmente a
erudita) ou as artes visuais, que também são compatíveis com os estudos e não
impedem o indivíduo de se formar no tempo certo e exercer uma profissão capaz
de sustentá-lo caso sua arte não dê em nada.
Afastando o jovem da escola
Com o futebol é diferente. Ao contrário da literatura ou da
música erudita, por exemplo, atividades intrinsecamente relacionadas com a
leitura e que favorecem os estudos, a paixão pelo futebol tende a afastar o
jovem dos livros – especialmente as crianças pobres. E isso em sua fase de
formação, o que é mais grave. Os filhos dos ricos e da classe média podem se
dedicar ao futebol sem nenhum prejuízo, matriculando-se numa escolinha desse
esporte da mesma forma que se dedicam à dança, à música, à natação, às artes
marciais, tudo com hora marcada, tutores pagos e supervisão dos pais, sem
atrapalhar os estudos.
Já as crianças faveladas que aparecem jogando bola nas
propagandas de televisão, quando se apaixonam pelo futebol, tornam-se
potenciais gazeteiras de aula para se enturmar com os amigos nos campinhos de
pelada da periferia, correndo o risco de se encontrar até com traficantes de
droga, que também adoram futebol e frequentam as praças esportivas. Não é à toa
que, em todo presídio, o futebol é a sagrada religião dos presos, irmanando em
seu culto os mais violentos criminosos.
Todos os governos, das prefeituras à União, passando pelos
Estados, gastam montanhas de recursos públicos no futebol, a fundo perdido,
enchendo o bolso de cartolas e políticos corruptos, pois o próprio jogador, se
não for craque, é o que menos ganha. Um dos argumentos para esse gasto é o
falso pretexto de que o esporte educa e afasta os jovens das drogas.
Ora, o futebol é uma atividade intrinsecamente associada ao
álcool – o que as cervejarias já perceberam há muito tempo, transformando os
jogadores da Seleção Brasileira nos principais propagandistas de cerveja ao
mesmo tempo em que são alçados à condição de heróis dos jovens. As torcidas
organizadas, com financiamento dos próprios clubes, são um exemplo da mistura
explosiva entre futebol, violência e drogas, espalhando o terror não apenas nos
campos de futebol, mas nas próprias cidades, sobretudo quando estão voltando
dos estádios, com adrenalina em alta.
Um estudo publicado em 2009 pelas pesquisadoras Liana Abrão
Romera (Unicamp) e Heloisa Helena Baldy dos Reis (Universidade Metodista de
Piracicaba) mostrou alta prevalência de uso e abuso de álcool entre torcedores
masculinos de futebol, de 15 a 25 anos, muito mais do que entre a população em
geral, com 36,9% dos pesquisados apresentando um consumo de bebida alcoólica
acima do nível considerado moderado. E o que é mais grave: 15,3% dos torcedores
menores de idade (de 15 a 17 anos) revelaram grau médio de problemas com
álcool, enquanto 6,8% já apresentavam um grau elevado de problemas com a
bebida.
Por sua vez, no livro “Violências nas Escolas”, a mais
abrangente pesquisa já realizada no País sobre o assunto, as pesquisadoras
Miriam Abramovay e Maria das Graças Ruas, que coordenam o estudo, reconhecem
que o futebol é um propulsor da violência nas escolas, uma vez que muitas
brigas sérias entre alunos, que chegam a resultar em feridos e até mortos, têm
sua origem nas partidas de futebol.
Depressão entre jogadores
O futebol costuma afastar os meninos pobres não só dos
livros, mas também do aprendizado profissional, justamente naquela fase da vida
em que deveriam se dedicar à própria formação. E, como muitos que se envolvem
com o futebol nunca se tornam jogadores bem-sucedidos, quando o jovem percebe
que não poderá fazer do esporte uma profissão, geralmente já é tarde para
voltar atrás e recuperar o tempo perdido na escola.
Um estudo sobre o estresse psicológico dos jogadores de
futebol, realizado em 2003 na Universidade Federal de Pernambuco, mostrou que
49% dos atletas pesquisados não estavam estudando e 72% não tinham o ensino
fundamental completo. Essa realidade, felizmente, vem mudando, principalmente
para jogadores oriundos de famílias mais abastadas, que conseguem conciliar o
futebol e os estudos, sobretudo quando se profissionalizam e contam com o apoio
de seus respectivos clubes.
Mesmo assim, é preciso considerar que o futebol oferece ao
atleta uma carreira muito curta, em que a invalidez profissional chega entre os
35 e 40 anos. Se o atleta não conseguir ganhar muito dinheiro no seu curto
período de atividade, tornando-se um rico empreendedor após a aposentadoria,
sem dúvida terá dificuldades de sobrevivência nos muitos anos de vida que lhe
restam após deixar os estádios.
Segundo pesquisa realizada neste ano pelo Sindicato Mundial
de Jogadores de Futebol, 26% dos jogadores em atividade relataram que sofrem
com ansiedade e depressão; entre os que encerraram a carreira, esse índice
salta para 39%. Isso faz com que as drogas, especialmente o álcool, também
sejam um grave problema entre jogadores de futebol. De acordo com a pesquisa,
19% dos jogadores em atividade sofrem com o alcoolismo, índice que sobe para
32% entre jogadores aposentados. Também pudera: se parar de trabalhar aos 65 anos
já não é fácil e leva muitos aposentados à depressão, o que dizer de se sentir
inválido aos 35 anos de idade, vivendo de glórias passadas pelos próximos 35
anos de vida?
Esses dados mostram que, por mais que o futebol seja uma
paixão nacional (ou uma paixão nacional do Brasil masculino, o que é mais
correto), os jogadores jamais deveriam ser vistos como exemplo de futuro para a
juventude brasileira. O futebol é um esporte e não pode ser transformado em
religião, como acontece no Brasil, a ponto de desarmar todos os espíritos
críticos do país quando a seleção entra em campo.
É inacreditável, por exemplo, como a grande imprensa ousa
afirmar que a Copa do Mundo no Brasil está sendo um inegável sucesso. Ora, como
ela pode ser um sucesso se está custando, até agora, cinco vezes mais do que o
previsto inicialmente, chegando a um custo R$ 25 bilhões, repita-se, dos quais
mais de R$ 20 bilhões saíram diretamente dos cofres públicos, num país em que
os pacientes morrem nos corredores dos hospitais por falta de atendimento
médico?
O balanço da Copa é, sem dúvida, totalmente negativo. O país
gastou o que não podia; o investimento privado não veio; as obras estruturais
não saíram das planilhas; os voos ficaram aquém do esperado; o comércio vendeu
menos do que no Dia das Mães; obras foram feitas a toque de caixa,
irresponsavelmente, chegando a cair um viaduto em Belo Horizonte. Até as
prostitutas ficaram decepcionadas com o movimento da Copa.
Tudo isso, por sinal, era previsível desde que a Fifa, para
gáudio de Lula e a sanha dos governadores, anunciou o evento no Brasil. Por
isso, diante desse capítulo de negativas da Copa, que supera de longe o
capítulo das negativas das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de
Assis, não resta dúvida que a Copa – do ponto de vista do planejamento estatal,
que é o que interessa, foi um completo fracasso. Resta saber quem vai gritar
isso na cara do governo, já que até a oposição se esqueceu do Brasil e torce
pela Seleção.
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José Maria e Silva é jornalista e sociólogo. - Publicado no Jornal Opção.
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