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terça-feira, 8 de julho de 2014

Confusão entre país e seleção esconde o inegável fracasso da Copa

Por José Maria e Silva

O balanço da Copa é, sem dúvida, totalmente negativo. O país gastou o que não podia; o investimento privado não veio; as obras estruturais não saíram das planilhas; os voos ficaram aquém do esperado; o comércio vendeu menos do que no Dia das Mães; obras foram feitas a toque de caixa, irresponsavelmente, chegando a cair um viaduto em Belo Horizonte.
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Definitivamente, a aposentadoria precoce do ministro Joaquim Barbosa, do Supremo, comprova que o Brasil é um país sem heróis. E o Hino Nacional Brasileiro, apropriado pelo futebol, é o retrato desse país “de menor”, que jamais alcança a maioridade moral e se coloca diante da vida como uma torcida organizada. A própria noção de patriotismo nada tem a ver com o país em si, mas com uma disputa futebolística que ocorre de quatro em quatro anos, embalada pelo Hino Nacional, que, por sinal, reflete, sem querer, os defeitos da nação. Seus versos iniciais transformam o mero córrego do Ipiranga num grande Nilo tropical, que banha a própria nação, e ainda enaltece o brado retumbante do povo heróico que vive às suas margens.

Todavia, o poeta Osório Duque Estrada logo se contradiz e, numa espécie de ato falho, chama o Brasil de “gigante pela própria natureza”, como se confessasse que nele habita uma humanidade anã que não merece ser cantada. A quase totalidade do Hino Nacional é uma loa às belezas naturais do Brasil – um sestro deste país para inglês ver. Machado de Assis dizia que essa “adoração da natureza” era “um modo de pisar o homem e suas obras” e ironizava todos aqueles que viviam elogiando a natureza brasileira: “Eu não fiz, nem mandei fazer o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei prontos.”

Como escrevi há quase dois anos, em artigo sobre a educação brasileira datado de 19 de agosto de 2012, “se Machado de Assis encarnasse uma de suas criaturas, o defunto-autor Brás Cubas, e se fizesse cronista póstumo deste Brasil da Copa e das Olimpíadas, haveria de notar que as coisas pioraram ainda mais e que já não é apenas a geografia do país que se conforma em ser cartão-postal — hoje, é a própria alma da nação que se entrega feito natureza morta ao olhar estrangeiro”.

Através do carnaval e do futebol, o brasileiro é convocado a encarnar em sua própria alma a aparência que o mundo espera dele – um ser feito exclusivamente de sentidos, em que o instinto é muito maior do que a razão. É como se não fôssemos indivíduos, mas exóticas paisagens sociais. E a Copa do Mundo, especialmente agora que está sendo realizada no país, reforça esse papel. Daí a imagem recorrente do negrinho jogando bola nas ruas da periferia, que se tornou o símbolo por excelência do Brasil, desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva encarnou o espírito do general Emílio Médici e decidiu quebrar o país para realizar a Copa do Mundo.

Chutando o futuro do País

A “Pátria de Chuteiras”, cantada por deslumbrados sociólogos burgueses como Roberto DaMatta, tornou-se a essência do Estado nacional, capaz de justificar até os R$ 25 bilhões gastos com a Fifa, a Globo e as empreiteiras, dos quais mais de R$ 20 bilhões saíram diretamente dos cofres públicos. É o futuro do país literalmente chutado por uma elite moralmente pusilânime, que, incapaz de abdicar de sua cara diversão (90% dos que vão aos jogos da Copa são das classes A e B), reforçam nas massas o gosto pelo futebol, obrigando até as mulheres – mais de 50% da nação – a suportarem esse esporte que nunca lhes disse nada, a despeito de elas fingirem que diz, sobretudo para agradar maridos e namorados, como costuma acontecer com a alma feminina em todos os setores da vida, desde a mulher bem-sucedida que sacrifica a profissão para manter o casamento (coisa que um homem raramente faria) até a operária que sacrifica a própria vida e a liberdade para sustentar o companheiro criminoso na cadeia.

O indefectível negrinho de periferia com a bola nos pés, presente em toda publicidade, reflete o arraigado preconceito das elites letradas e endinheiradas, que, esquecendo-se de Cruz e Sousa e Lima Barreto, tratam o negro como um ser descerebrado, incapaz de aparecer com um livro nas mãos. Mas, de todas as nefastas propagandas do gênero, a que mais me indignou foi a de um banco ou cartão de crédito em que um negrinho aparecia beijando a bola com uma frase asquerosa que traduzia o gesto indecoroso: “Este amor é para toda a vida”.

Não sei se a frase é exatamente essa e, felizmente, não lembro o nome do anunciante, numa prova de que, ao menos comigo, essa propaganda asquerosa não surtiu efeito. Mas a frase, em essência, transformava a relação do negrinho com a bola num amor exclusivista e eterno, acima de pátria e família, e não sei por que – aliás, sei muito bem, mas fica para outro artigo – me remete à aposentadoria precoce do ministro Joaquim Barbosa, que, a seu modo, encarnou aquele pequeno escravo da bola, ao literalmente chutar para escanteio a sua missão no Supremo, ainda por cima alegando que ela lhe tirava a privacidade para frequentar bares.

A imagem do negrinho beijando a bola e declarando a ela seu amor eterno chega a ser moralmente criminosa. Ela reforça a ideia de que o futebol é o único meio de ascensão dos negros pobres de periferia, quando, na realidade, é justamente o contrário – o futebol é uma extensão virtual e festiva da visão que os escravocratas tinham do negro, como se ele continuasse não tendo alma e, ao invés de almejar ser um cérebro que pensa, se reduzisse a um corpo que joga. O que, no caso de uma criança pobre, é quase uma condenação.

A ilusão do futebol e das artes

Assim como as artes (teatro, música, dança, literatura etc.), o futebol é uma ilusão. Dependente do talento, da criatividade, muitas vezes do acaso, o futebol é uma atividade de risco para quem resolve transformá-lo numa profissão e dificilmente capacita alguém a ganhar a vida e criar família, a não ser os raros craques que se tornam profissionais de grandes times e, mesmo depois de aposentados, podem continuar vivendo à custa dos milhões que ganharam nos poucos anos de atividade futebolística.

Assim como a maioria dos que se dedicam à literatura, ao teatro, às artes plásticas raramente conseguirão viver dessas atividades, também a maioria dos jogadores de futebol vegeta em clubes falidos, que atrasam salários durante meses, levando o profissional a viver numa situação de crônica instabilidade. Por isso, quando os filhos demonstram propensão para atividades que dependem da criatividade, como as artes, os pais costumam ficar preocupados e lhes aconselham que não abandonem os estudos e aprendam uma profissão.

Na biografia dos grandes artistas, são frequentes os casos de resistência familiar à vocação artística. O que não deixa de ser bom, pois ajuda a filtrar os verdadeiros talentos. Geralmente só se dispõe a fazer grandes sacrifícios pela arte, sujeitando-se até à fome, quem está convicto de seu próprio talento e trabalha diuturnamente para aprimorá-lo. Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, mes­mo sendo filho de Januário, o maior sanfoneiro de “Taboca a Rancharia, de Salgueiro a Bo­do­có”, como diz a canção “Res­peita Januário”, teve de vencer a resistência da mãe, praticamente fugindo de casa, para poder dedicar-se à música.

Mas a dedicação integral à arte é sempre um risco, uma incerteza, uma possibilidade de tudo dar errado. Na história da dupla Zezé di Camargo & Luciano, que caiu na estrada muito cedo, há a trágica história do irmão que fazia dupla com Zezé e morreu num acidente. Até o divino Mozart pagou um alto preço por se dedicar visceralmente à sua arte, morrendo precocemente aos 35 anos sem ter alcançado a independência e a estabilidade financeira com que tanto sonhava.

Os pais quase nunca aceitam que o filho se dedique apenas à arte – geralmente exigem que ele nunca abandone os estudos, o que leva a maioria a transformar em passatempo o talento, quando ele não é suficientemente forte para enfrentar as intempéries. O mesmo ocorre – ou deveria ocorrer – com o futebol, que não pode ser imposto às crianças como um ideal de vida, como fazem, hoje, as propagandas governamentais e também das empresas privadas, sempre ciosas de agradar o governo. O futebol é ainda mais incerto do que as artes. Ele chega a ser nocivo para as crianças pobres, justamente as que mais precisam do estudo se quiserem ser alguém na vida, uma vez que não dispõem nem da herança familiar nem das relações sociais dos ricos.

É óbvio, por exemplo, que poesia não enche barriga de ninguém. Mas um adolescente pobre que se interessa por poesia não precisa largar a escola para se dedicar à sua arte. Pelo contrário, ainda que o amor pela poesia possa indispô-lo com uma ou outra disciplina mais árida, geralmente ele irá se destacar nas ciências humanas e, mesmo que nunca venha a ser um Drummond, sempre poderá ganhar a vida com o jornalismo, a publicidade, o magistério ou qualquer outra atividade em que seu talento com as palavras possa ser bem empregado. O mesmo vale para o teatro, a música (especialmente a erudita) ou as artes visuais, que também são compatíveis com os estudos e não impedem o indivíduo de se formar no tempo certo e exercer uma profissão capaz de sustentá-lo caso sua arte não dê em nada.

Afastando o jovem da escola

Com o futebol é diferente. Ao contrário da literatura ou da música erudita, por exemplo, atividades intrinsecamente relacionadas com a leitura e que favorecem os estudos, a paixão pelo futebol tende a afastar o jovem dos livros – especialmente as crianças pobres. E isso em sua fase de formação, o que é mais grave. Os filhos dos ricos e da classe média podem se dedicar ao futebol sem nenhum prejuízo, matriculando-se numa escolinha desse esporte da mesma forma que se dedicam à dança, à música, à natação, às artes marciais, tudo com hora marcada, tutores pagos e supervisão dos pais, sem atrapalhar os estudos.

Já as crianças faveladas que aparecem jogando bola nas propagandas de televisão, quando se apaixonam pelo futebol, tornam-se potenciais gazeteiras de aula para se enturmar com os amigos nos campinhos de pelada da periferia, correndo o risco de se encontrar até com traficantes de droga, que também adoram futebol e frequentam as praças esportivas. Não é à toa que, em todo presídio, o futebol é a sagrada religião dos presos, irmanando em seu culto os mais violentos criminosos.

Todos os governos, das pre­feituras à União, passando pelos Estados, gastam montanhas de recursos públicos no futebol, a fundo perdido, enchendo o bolso de cartolas e políticos corruptos, pois o próprio jogador, se não for craque, é o que menos ganha. Um dos argumentos para esse gasto é o falso pretexto de que o esporte educa e afasta os jovens das drogas.

Ora, o futebol é uma atividade intrinsecamente associada ao álcool – o que as cervejarias já perceberam há muito tempo, transformando os jogadores da Seleção Brasileira nos principais propagandistas de cerveja ao mesmo tempo em que são alçados à condição de heróis dos jovens. As torcidas organizadas, com financiamento dos próprios clubes, são um exemplo da mistura explosiva entre futebol, violência e drogas, espalhando o terror não apenas nos campos de futebol, mas nas próprias cidades, sobretudo quando estão voltando dos estádios, com adrenalina em alta.

Um estudo publicado em 2009 pelas pesquisadoras Liana Abrão Romera (Unicamp) e Heloisa Helena Baldy dos Reis (Uni­versidade Metodista de Piracicaba) mostrou alta prevalência de uso e abuso de álcool entre torcedores masculinos de futebol, de 15 a 25 anos, muito mais do que entre a população em geral, com 36,9% dos pesquisados apresentando um consumo de bebida alcoólica acima do nível considerado moderado. E o que é mais grave: 15,3% dos torcedores menores de idade (de 15 a 17 anos) revelaram grau médio de problemas com álcool, enquanto 6,8% já apresentavam um grau elevado de problemas com a bebida.

Por sua vez, no livro “Vio­lências nas Escolas”, a mais abrangente pesquisa já realizada no País sobre o assunto, as pesquisadoras Miriam Abramovay e Maria das Graças Ruas, que coordenam o estudo, reconhecem que o futebol é um propulsor da violência nas escolas, uma vez que muitas brigas sérias entre alunos, que chegam a resultar em feridos e até mortos, têm sua origem nas partidas de futebol.

Depressão entre jogadores

O futebol costuma afastar os meninos pobres não só dos livros, mas também do aprendizado profissional, justamente naquela fase da vida em que deveriam se dedicar à própria formação. E, como muitos que se envolvem com o futebol nunca se tornam jogadores bem-sucedidos, quando o jovem percebe que não poderá fazer do esporte uma profissão, geralmente já é tarde para voltar atrás e recuperar o tempo perdido na escola.

Um estudo sobre o estresse psicológico dos jogadores de futebol, realizado em 2003 na Universidade Federal de Per­nambuco, mostrou que 49% dos atletas pesquisados não estavam estudando e 72% não tinham o ensino fundamental completo. Essa realidade, felizmente, vem mudando, principalmente para jogadores oriundos de famílias mais abastadas, que conseguem conciliar o futebol e os estudos, sobretudo quando se profissionalizam e contam com o apoio de seus respectivos clubes.

Mesmo assim, é preciso considerar que o futebol oferece ao atleta uma carreira muito curta, em que a invalidez profissional chega entre os 35 e 40 anos. Se o atleta não conseguir ganhar muito dinheiro no seu curto período de atividade, tornando-se um rico empreendedor após a aposentadoria, sem dúvida terá dificuldades de sobrevivência nos muitos anos de vida que lhe restam após deixar os estádios.

Segundo pesquisa realizada neste ano pelo Sindicato Mundial de Jogadores de Futebol, 26% dos jogadores em atividade relataram que sofrem com ansiedade e depressão; entre os que encerraram a carreira, esse índice salta para 39%. Isso faz com que as drogas, especialmente o álcool, também sejam um grave problema entre jogadores de futebol. De acordo com a pesquisa, 19% dos jogadores em atividade sofrem com o alcoolismo, índice que sobe para 32% entre jogadores aposentados. Também pudera: se parar de trabalhar aos 65 anos já não é fácil e leva muitos aposentados à depressão, o que dizer de se sentir inválido aos 35 anos de idade, vivendo de glórias passadas pelos próximos 35 anos de vida?

Esses dados mostram que, por mais que o futebol seja uma paixão nacional (ou uma paixão nacional do Brasil masculino, o que é mais correto), os jogadores jamais deveriam ser vistos como exemplo de futuro para a juventude brasileira. O futebol é um esporte e não pode ser transformado em religião, como acontece no Brasil, a ponto de desarmar todos os espíritos críticos do país quando a seleção entra em campo.

É inacreditável, por exemplo, como a grande imprensa ousa afirmar que a Copa do Mundo no Brasil está sendo um inegável sucesso. Ora, como ela pode ser um sucesso se está custando, até agora, cinco vezes mais do que o previsto inicialmente, chegando a um custo R$ 25 bilhões, repita-se, dos quais mais de R$ 20 bilhões saíram diretamente dos cofres públicos, num país em que os pacientes morrem nos corredores dos hospitais por falta de atendimento médico?

O balanço da Copa é, sem dúvida, totalmente negativo. O país gastou o que não podia; o investimento privado não veio; as obras estruturais não saíram das planilhas; os voos ficaram aquém do esperado; o comércio vendeu menos do que no Dia das Mães; obras foram feitas a toque de caixa, irresponsavelmente, chegando a cair um viaduto em Belo Horizonte. Até as prostitutas ficaram decepcionadas com o movimento da Copa.

Tudo isso, por sinal, era previsível desde que a Fifa, para gáudio de Lula e a sanha dos governadores, anunciou o evento no Brasil. Por isso, diante desse capítulo de negativas da Copa, que supera de longe o capítulo das negativas das “Memórias Póstu­mas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, não resta dúvida que a Copa – do ponto de vista do planejamento estatal, que é o que interessa, foi um completo fracasso. Resta saber quem vai gritar isso na cara do governo, já que até a oposição se esqueceu do Brasil e torce pela Seleção.




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José Maria e Silva é jornalista e sociólogo. - Publicado no Jornal Opção.

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