Um estrangeiro que ignorasse a nossa história, mas
conseguisse ler a nossa imprensa, certamente chegaria à conclusão de que este é
um país que padece de uma doença social rara, talvez única, nativa mesmo, como
a jabuticaba. O nome dessa doença é esquizofrenia histórica.
Como sabemos, nestes 50 anos do chamado “golpe”, nunca os
militares foram tão demonizados como agora. Alguns poderão dizer que não é bem
assim; que as críticas são dirigidas aos desmandos e aos excessos havidos
durante a ditadura, mas a gente sabe que isso não é verdade. Os militares são
tratados como intrusos. Passa-se adiante a impressão de que tudo caminhava às
mil maravilhas no mundo civil; de que o governo João Goulart era um exemplo de
democracia e disciplina, e aí chegaram os gorilas fardados para nos tirar no
paraíso. Notem: é evidente que eu acho que militares não têm de se ocupar da
política. Mas acho também que as pessoas que se ocupam da história devem se
ater aos fatos. E é fato que foi o governo civil de 1964 que criou as condições
para a golpe militar. Negá-lo é fazer pouco caso das evidências — e nada disso
impede que se reconheçam os desmandos havidos, porque é certo que os houve.
Ponto parágrafo.
O Brasil é governado por civis desde 1985. Embora as
primeiras eleições diretas para presidente, depois do ciclo militar, tenham
ocorrido só em 1989, chamar de “ditadura” o governo vigente em 1982, por
exemplo, é um pouco mais do que licença poética — é mentira mesmo. Mas nem me
atenho a isso agora. O fato é que, depois de quase três décadas, quando se
precisa de uma referência de confiabilidade, de seriedade, de
incorruptibilidade e de eficiência, eis que se apela às… Forças Armadas.
Garantir a segurança pública é tarefa precípua dos civis, é
evidente. Sim, o artigo 142 da Constituição reconhece às Forças Armadas papel
subsidiário na manutenção da lei e da ordem, mas essa não é sua tarefa
primeira. Não obstante, a partir de sábado, 2050 homens da Brigada de
Infantaria Paraquedista e 450 da Marinha vão ocupar o Complexo da Maré, no Rio.
Lá ficarão, no mínimo, até 31 de julho — sim, leitores, a Copa do Mundo
acontece nesse intervalo.
Pessoalmente, já disse, nada tenho contra a intervenção das
Forças Armadas no combate ao narcotráfico. Há quase 30 anos, já disse, escrevi
meu primeiro texto defendendo tal ação. Ocorre que não estou entre aqueles que
saem por aí a defender uma tal desmilitarização da polícia — seja lá o que isso
signifique — ou que tratam os militares como espantalhos.
E notem: no Complexo da Maré, o Exército e a Marinha não se
limitarão a fazer um trabalho de apoio, não. Vão mesmo exercer função de
polícia. Segundo o general Ronaldo Lundgren, chefe do Centro Operacional do
Comando Militar do Leste, os homens estão autorizados a realizar patrulhamento
ostensivo, revista e prisões em flagrante.
Todo cuidado é pouco. A chance de haver problemas é
gigantesca. O narcotráfico costuma mobilizar agentes provocadores para incitar
uma resposta violenta dos soldados e, assim, jogar a comunidade contra os
militares. Lundgren afirmou, durante entrevista coletiva no Palácio Duque de
Caxias, no Centro do Rio, que haverá um telefone para que os moradores da Maré
possam denunciar eventuais abusos de autoridade.
Nos 50 anos do golpe, o poder civil foi bater à
porta dos quartéis. Como se vê, as Forças Armadas não são intrusas, mas parte
da história do Brasil.
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