Algumas observações sobre as manifestações que ocuparam o
país e, ao que parece, vão ocupar ainda mais:
1. Há dois anos, no auge dos protestos de junho de 2013,
estava prestes a dar uma palestra para um grupo de amigos e disse a um dos
convidados, um desses janotas que vivem em função do mercado financeiro, que o
Brasil estava passando por um processo revolucionário. Ele apenas fez um muxoxo
e um esgar de desprezo;
2. Estamos na fase em que a "crise de hierarquia"
(crisis of Degree, na terminologia de René Girard), na qual a sociedade não
consegue mais se espelhar na elite que deveria liderá-la, já mostrou a que veio. O Estado falido que não admite
isso para si mesmo e, por meio de seus funcionários e acólitos, começa a
achacar a população com impostos, taxas e outros tarifaços; a economia que se
desagrega a olhos vistos no bolso de qualquer trabalhador, independente de
classe social; um governo perdido que não sabe o que deve ser feito para manter
o mínimo de ordem institucional; e um clima crescente de insatisfação que, se
não for devidamente canalizada, pode descambar em violência, uma vez que anda
sempre em busca de experiências catárticas, como as passeatas ou manifestações
de massa;
3. Em outras palavras, citando Guimarães Rosa em Grande
Sertão: Veredas, estamos em pleno "o diabo na rua, no meio do
redemoinho";
4. Dito tudo isso, o que mais surpreendeu na manifestação do
dia 15 de março de 2015 foi o fato de que, pela primeira vez em minha porca
vida, não era um movimento comandado pela retórica de esquerda e sim uma
reunião daquilo que os americanos chamam de "a maioria silenciosa" -
ou seja, a maioria de todos nós, que trabalha e paga impostos e que, sobretudo,
aguenta até um certo limite para a interferência do Estado em sua vida privada.
Contudo, quando este limite estoura - como é precisamente o caso deste momento
em que estamos vivendo - a reação é a da
justa indignação;
5. Em geral, os espectadores engajados sempre ficam céticos
em relação às manifestações que envolvam mais de três pessoas. A princípio, foi
o meu caso. Mas, ontem, ao ir ao protesto na Paulista para observar, a primeira
coisa que me sensibilizou foi, digamos assim, "o mimetismo do bem".
As pessoas que estavam lá podem até não ser honestas ou boas todos os dias e
todas as horas da sua vida; mas, naquele momento, todos queriam ser bons, todos
queriam ser honestos - e isto é o que conta. Minha esposa foi comprar duas
Cocas em uma banca que estava aberta e achou que o vendedor havia errado no
troco. Informei que ele estava certo - e o sujeito respondeu a ela: "Aqui
ninguém quer roubar não, aqui ninguém é PT";
6. A outra coisa que impressionou foi a ausência de um clima
de violência e de ressentimento. Havia famílias e gerações inteiras ali: desde
do avô até o neto pequeno, passando pela mulher, pelo filho, pelo sobrinho.
Outro detalhe: muitos negros, vários homossexuais, vários travestis. O que isso
significa? Que decência não tem genero, raça ou escolha sexual e que esse
pessoal também está cansado de ter as suas reivindicações sequestradas por um
grupo de oportunistas;
7. Assim, fica nítido que o PT não engana mais ninguém.
Aliás, é o que todos queriam ali, sem exceção: que Dilma e o PT fossem embora
da vida pública. O que seria excelente, porém não é o que vai acontecer: Dilma
será rifada pelo PT para este permanecer no poder e o Partido dos Trabalhadores
vai se desintegrar em outros pequenos partidos para continuar com seu trabalho
hegêmonico de aviltamento das consciências. O PMDB será o fiel da balança e
terá de se unir com o PSDB para governar minimamente o país;
8. A única coisa que pode mudar essa situação é se Sergio
Moro (gostaria de saber se o juiz federal tem consciência de que o seu Moro
pode ser tanto do juiz italiano Aldo ou do mártir inglês Tomás), com a Operação
Lava Jato, limpar a estrutura política do país, colocando a cúpula do PT
(especialmente Lula e José Dirceu) em maus lençóis - leia-se: em cana. Por mais
que Moro & Cia sejam extremamente competentes, temos que saber até que
ponto o patrimonialismo jurídico deixará Dias Toffoli em seu devido lugar, já
que o PT deseja que ele cumpra o seu papel de militante do patrimonialismo
revolucionário;
9. Com este cenário, não é um exagero aceitar a conclusão de
Olavo de Carvalho (e, depois, copiada descaradamente por Vladimir Safatle,
sempre sem citar a fonte original) de que estamos assistindo à morte da Nova
República. E, com isso, temos um problema maior: Quem será o líder de todo esse
redemoinho que arrasa com o país? O PSDB perdeu a sua chance porque, como
sempre, foi pusilânime - e mais: ele sabe que depende muito bem do sistema
podre da Nova República para permanecer no poder. O PT terá de se metamorfosear
- e isso levará algum tempo até assumir a sua nova máscara. Sobrou o PMDB, que,
infelizmente, é o modelo supremo do patrimonialismo tradicional, mas é
infinitamente muito melhor do que o modelo estabelecido pelo Foro de São Paulo
(e que, na verdade, foi a única oposição real que o PT teve em seus doze anos
de governo);
10. E, por falar em Olavo de Carvalho, lembro-me que há dois
meses tive uma conversa com Joel Pinheiro da Fonseca e ele afirmou que "o
olavismo estava morrendo". Bem, ontem, na Paulista, eu não vi nenhuma
placa escrita "Joel Pinheiro tem razão";
11. Voltando aos três tipos de patrimonialismo, fenômeno
descrito com perspicácia por Raymundo Faoro, mas desenvolvido de forma
brilhante por Antonio Paim em A querela do estatismo e depois levado ao extremo
da genialidade por Paulo Mercadante em seu A coerência das incertezas. A luta
pelo butim do Estado se dá entre o PT, PSDB e PMDB - mas, ontem, na
manifestação da Paulista e em outros lugares do Brasil, as pessoas não queriam
saber nada disso. Ao contrário dos protestos de 2013, em que desejavam mais Estado
para resolver problemas do próprio Estado, tudo o que queriam ali era que o
governo parasse de interferir na vida de cada um;
12. Assim, o que pode acontecer daqui em diante? Dilma e o
PT caem? É provável que o Partido dos Trabalhadores rife Dilma Roussef para não
perder o reino. Tudo isso depende de como o PMDB (leia-se Eduardo Cunha) se
comportará. Mas o PT demorará para ir embora da vida pública. Afinal, não se
trata de um mero partido - e sim de uma forma de pensamento. Este pessoal não
vai embora tão cedo;
13. A prova disso é a própria reação da mídia que,
desesperada porque está vendo o seu mundo ruir, parte para a desinformação pura
e simples, como fez a Globo News com os comentários patéticos de Cristiana
Lobo, a Folha de São Paulo com sua opção "a solução é à esquerda" e
os demais veículos;
14. Enfim, há muita coisa a ser feita. Mas o que tem de ser
comemorado é que, pela primeira vez na minha curta vida que espero ser longa,
eu testemunhei o fato de que o feitiço virou contra o feiticeiro.
_____________
Martim Vasques da Cunha é escritor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário