Por Luis Milman
As críticas de Hannah Arendt ao julgamento de Eichmann a
antipatizaram com a liderança do Mapai (o partido socialdemocrata, à época no
poder em Israel, sob a liderança de Ben Gurion), mas nem de forma remota
respaldam as invenções repugnantes que Bourdoukan escreve.
Resta-nos esperar, agora, que o Ministério Público Federal,
logo depois o Poder Judiciário, revelem as razões pelas quais essa gente, que
acredita e propaga esta espécie de lixo pelos campi universitários, digam seus
motivos para obter uma relação de israelenses na UFSM.
O artigo Serão os semitas humanos? (revista Caros Amigos, nº
68, novembro de 2002), do jornalista Georges Bourdoukan, é uma arenga
antissemita que ao leitor atento, judeu ou não, só pode causar repulsa. Mas é
importante começar este texto com uma menção a ele, porque Bourdoukan, que tem
muita influência no meio político e estudantil trotskista, reproduz a revelação
de uma história, segundo ele, secreta do sionismo, elaborada e difundida ainda
pela extinta União Soviética, a partir da metade dos anos 1960 e hoje propagada
mundo afora, por movimentos trotskistas pró-palestinos, como o tal Comitê
Santamariense de Solidariedade ao Povo Palestino, ligado ao Foro Social Mundial
Palestina Livre. O Foro se reuniu em Porto Alegre, há dois anos, com o apoio do
governo Tarso Genro. As tais entidades que fizeram o pedido ao Reitoria da
UFSM, para que fornecesse a informações se havia ou a perspectiva de haver,
docentes ou discentes na universidade, estão entre os grupos de pressão que
fizeram Tarso Genro, no final de seu governo, cancelar um convênio que o estado
assinou em 2013 com a Elbit, uma empresa israelense de desenvolvimento
tecnológico para aviação instalada em Porto Alegre. Tarso explicou, por meio de
seu secretário de relações internacionais, que o governo gaúcho, com a decisão
de romper com a Elbit, alinhava-se ao movimento internacional pelo boicote,
desinvestimento e sanções contra o Estado de Israel, suas empresas, artistas,
cientistas, professores e estudantes.
O texto de Bourdoukan reproduz, além de outras fabulações, a
narrativa de Ralph Schoenmann, um trotskista americano, feitas no livro The
Hidden History of Zionism, de 1988. Em entrevista concedida à revista Teoria e
Debates do PT (edição nº 9, janeiro-março de 1989), para Marcus Sokol, líder,
até hoje, da tendência petista O Trabalho, ele afirmava que “em 1941, o partido
de Itzchak Shamir (o Likud de Benjamin Netaniahu) concluiu um pacto militar com
o 3º Reich alemão, que consistia em lutar ao lado dos alemães e fundar um
estado autoritário colonial, sob direção nazista.”
A afirmativa era uma variante do material de propaganda
soviético produzido em ampla escala, a partir dos anos 1960. Na militância
comunista-confessional, atuante nos campi universitários, no meio cultural e
político partidário, artigos e livros como os de Bourdoukan e Schoenmann
impulsionam as ações de apoio e difusão do movimento internacional BDS
(Boicote, Desenvestimento e Sanções), iniciado em 2005, contra Israel, e o
recente pedido, feito à Reitoria da UFSM, por uma lista de alunos e professores
israelenses na universidade, a hoje famigerada Lista Burmann-Schlosser.
No Brasil, o confessionalismo marxista antissemita tem
abrigo entre petistas das tendências Democracia Socialista (DS), e O Trabalho,
além do PSOL, PC do B, PSOL, PSTU e PCO, todos trotskistas. Eles atacam Israel
de forma incendiária, em revistas como Vermelho e Marxismo Vivo. O
antissemitismo desta pregação é autoexplicativo, seja pelo uso essencialista,
depreciativo, do termo "judeu" na menção que faz a políticos
israelenses, seja porque, entre outras barbaridades racistas, afirma que os
judeus sionistas foram os maiores aliados dos nazistas e corresponsáveis pela
criação dos campos de concentração. Esta ideologia está na base da fundação do
movimento BDS, financiado por ONGs internacionais, Irã, Arábia Saudita e Qatar
(para detalhes, ver Edwin Black, Financing the Flames, 2013).
Nos últimos 50 anos, o antissemitismo tornou-se fácil de ser
praticado sob o nome de antissionismo ou anti-israelismo. Basta ler os textos
dos seus expoentes, como Roger Garaudy, Robert Faurisson, Pierre Guillaume,
David Irwing, Serge Thion, Israel Shamir, Noham Chomsky e Edward Said e Emir
Sader (o último no Brasil) para citar alguns dos mais conhecidos antissemitas e
antissionistas de hoje, alinhados à esquerda ideológico-confessional marxista.
Todos praticam distorções cínicas e se valem de um arsenal de acusações
mentirosas e depravadas para defenderem, alegadamente, a causa palestina. Este
ativismo tenta demonstrar a todo custo que Israel não pode existir, porque é
racista, fundamentalista, imperialista e por aí vai.
Bourdoukan faz parte de uma militância intelectual
profissionalizada , a exemplo dos franceses Thion e Guillaume, que dizem
repudiar o racismo e orientar-se pelo internacionalismo anti-imperalista. Eles
reivindicam, obviamente, o marxismo como fonte inspiradora. Há um manifesto de
Guillaume, sobre a linha de pensamento da editora antissemita Velha Toupeira
(Paris), que invoca a "autoridade do texto fundador de Karl Marx, ‘Sobre a
questão judaica’", de 1843, para defender o "antijudaismo radical
sempre proclamado urbi et orbi ... ." (P. Guillaume, Carta a Phillip
Randa, La Vielle Taupe, 1998).
Eliminar o judaísmo, o sionismo e o Estado de Israel é uma
coisa, como propugna Guillaume, e as seitas confessionais trotskistas que
pululam nos campi universitários do mundo todo, em apoio à causa palestina...
Eliminar fisicamente os judeus, como os nazistas pretenderam, é outra. Os
sionistas, segundo eles, gostam de embaralhar tudo. Os judeus desprovidos de
judaísmo são pessoas como todo mundo, mas o judaísmo e o sionismo, vade retro.
Afinal, qual a razão do sofrimento dos povos, da existência das guerras? Quem
está promovendo o genocídio palestino? A dominação judaica (dos governos, dos
bancos, da mídia, dos cartéis de petróleo)! Assim, na guerra santa contra os judeus-sionistas
e Israel, é preciso revelar como as coisas realmente são. Esta é a missão
revolucionária de Bourdoukan e da militância ligada ao movimento BDS, que,
diga-se em tempo, a cumprem de maneira metódica e expansiva, como prova o caso
de Santa Maria, com a Lista Burmann-Schlosser. Vejamos algumas das revelações
de Bourdoukan: o hierarca nazista Heirich Heidrych era judeu. A russa judia
Golda Meyer dizia que as crianças palestinas eram animais de duas patas, e
Israel foi criado pelos nazistas. Quem garante é Hannah Arendt e os arquivos da
União Soviética!
É verdade que quem, pela primeira vez, passou a propagar a
“revelação”, foram os soviéticos, depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967. E
qual era a versão soviética para o surgimento do movimento sionista? A campanha
antissemita dos soviéticos, um aspecto permanente do regime totalitário depois
de 1967, era conduzida pelo nome em código de “antissionismo”, que se tornou
uma dissimulação de toda a variedade de antissemitismo. Nesta condição, foi
transplantado para a tese do anti-imperialismo leninista (ver o texto de Lênin,
canônico para todos os comunistas, Imperialismo, a fase adiantada do
capitalismo, de 1916). Os soviéticos, em sua doutrina oficial, adaptaram o
conceito de sionismo ao de colonialismo; e o estado sionista a um posto
avançado do imperialismo.
Alguém pode lembrar, aqui, que a União Soviética de Stálin
foi o primeiro país a reconhecer o Estado de Israel, depois de sua criação, em
1948. Certo. Mas Stálin foi motivado por razões geopolíticas: ele pretendia
marcar, através de Israel, a presença russa no Oriente Médio, para contrapor-se
aos EUA, Inglaterra e França. Como não conseguiu, desde o começo da década de
1950, a propaganda antissionista soviética sempre foi intensificada e tornada mais
abrangente, acentuando os vínculos entre o sionismo, os judeus em geral e o
judaísmo. Centenas de artigos, em revistas e jornais por toda a União
Soviética, retratavam os sionistas e os líderes israelenses como elementos
comprometidos em uma conspiração internacional, lado a lado com as diretrizes
dos antigos Protocolos dos Sábios de Sião, o livro apócrifo clássico sobre a
existência de um governo mundial judaico, produzido pela Okrana, a polícia
secreta czarista, no início do século XX, para insuflar os aterrorizantes
pogroms contra os judeus russos (para mais detalhes, ver Paul Johnson, História
dos Judeus, 1987; Walter Laqueur, The Changing Face of Anti-semitism, 2008).
Nos anos que se seguiram à Guerra dos Seis Dias, até o seu
colapso, a máquina de propaganda soviética se tornou a fonte principal de
material antissemita do mundo. Ela reunia matérias de praticamente todo
segmento arqueológico da história antijudaica, desde a antiguidade clássica até
o hitlerismo. O volume destes materiais começou a igualar-se com os que os
nazistas produziram. O talvez mais famoso livro deste acervo de propaganda -
que se espalhava por incessantes e repetitivos artigos e radiodifusões até
brochuras orientadas - chama-se O Judaísmo e o Sionismo, de Trofim Kychko (1968),
no qual ele expõe “a ideia chauvinista da escolha de Deus pelo povo judeu, a
propaganda do messianismo e ideia de reinar sobre os povos. ” Em A Rastejante
Contrarrevolução, de 1974, em outro livro clássico desta propaganda, escrito
por Vladimir Begun, se lê que “... a Bíblia é um insuperável manual de
sanguinolência, hipocrisia, traição, perfídia e degenerescência moral. ” As
mesmas afirmações foram feitas, anos depois, por José Saramago, o conhecido
escritor português, que jamais negou seu stalinismo.
Agora, chamo atenção para a pedra de toque deste
antissemitismo delirante, de amplitude global, defendido pelos movimentos
comunistas pós-soviéticos e, em especial, pelos trotskistas. Trata-se da
relação entre os nazistas e os sionistas. A história começou a circular na
década de 1970 e apregoava que os sionistas (israelenses) eram sucessores dos
nazistas, afirmação “comprovada pela evidência” de que o próprio Holocausto de
Hitler fora uma conspiração judaico-nazista para se livrar dos judeus pobres,
que não podiam ser usados nos planos sionistas. Na verdade, conforme se
alegava, o próprio Hitler tirava seus planos de Theodor Herzl, o fundador do
sionismo político, em 1898. A revelação soviética seguia: os líderes
judaico-sionistas, que agiam sob ordens de judeus milionários que controlam o
capital financeiro internacional, ajudaram a SS e a Gestapo a arrebanhar judeus
indesejados, ou para as câmaras de gás ou para os kibutzim, iniciando a
colonização judaica moderna da Palestina, e desterrando a população árabe
nativa, dando origem à dramática situação do povo palestino. Essa conspiração
judaico-nazista foi usada como fundamento, pela propaganda soviética, para
acusações de atrocidades contra os governos israelenses, sobretudo durante e
depois da Guerra do Líbano de 1982. A ilação, aqui, era direta: Como os
sionistas já haviam se sentido felizes em se juntar a Hitler no extermínio de
seu próprio povo, conforme publicado no Pravda, edição de 17 de março de 1984,
não causaria espanto que agora massacrassem árabes libaneses, que eles
consideravam sub-humanos.
Mesmo o mais elementar senso de prudência é mandado às favas
pelo fervor militante do antissemitismo comunista oficial, hoje representado
pelas revistas Caros Amigos, Vermelho, ou Marxismo Vivo. Para a grande maioria
das pessoas informadas minimamente sobre Israel, é dizer que Golda Meyer jamais
se referiu aos palestinos de forma abjeta, como Bourdoukan afirma. E aqueles
que conhecem Hannah Arendt sabem que seu texto Eichmann em Jerusalem, foi
conspurcado pelo racismo hidrófobo do articulista de Caros Amigos.e pela
milícia da esquerda confessional. As críticas de Hannah Arendt ao julgamento de
Eichmann a antipatizaram com a liderança do Mapai (o partido socialdemocrata, à
época no poder em Israel, sob a liderança de Ben Gurion), mas nem de forma
remota respaldam as invenções repugnantes que Bourdoukan escreve, nos passos de
Schoennman e dos propagandistas soviéticos.
O antissemitismo é uma patologia moral e política, mas já
produziu desastres suficientemente conhecidos para ser tolerado, seja lá a que
pretexto for. A verdade é que seus propagadores comunistas sempre o exercitaram
metodicamente com cinismo, em nome da fraternidade dos homens, e com isto obtêm
respaldo de organizações e grupelhos de fanáticos prosélitos adeptos de um
espantalho marxista-leninista apodrecido, engajado na luta contra o opressivo
Estado judeu.
A obsessão antijudaica nestes, digamos, setores ideológicos,
chegou a tal ponto que, em 1998, o jornalista José Arbex Junior, editor
especial da revista Caros Amigos, que se diz ultra-pacifista e também é muito
ligado ao Movimento de Trabalhadores sem Terra (MST), de João Pedro Stédile,
escreveu longo comentário sobre uma notícia publicada no Sunday Times, de
Londres, segundo a qual os israelenses haviam sintetizado um vírus que liquida
apenas os árabes e poderia ser propagado por ar ou água. Assim, a disseminação
não apresentaria qualquer risco aos judeus, se viesse a ocorrer nos territórios
palestinos ocupados. O devaneio era explícito: para atingir o objetivo, o tal
vírus teria de possuir algum tipo de crença seletiva, a ponto de se achar capaz
de distinguir entre o DNA de árabes e de judeus ou de seja lá quem for. O ponto
aqui é que vírus não têm crenças, logo não podem ser imbecis. Por isto, jamais
haverá um tão idiota como os antissemitas delirantes que acreditam, como Arbex,
que um vírus étnico possa existir. Dias depois de sua publicação no Sunday
Times, descobriu-se que a notícia reproduzia parte uma novela de ficção de
terceira-linha, jamais publicada e escrita por um ex-funcionário de um
instituto de pesquisas israelense. A história foi desmentida pelo Sunday Times.
A asneira, inspirada na acusação medieval de que os judeus
envenenavam os poços durante a época da Peste Negra, na Europa, serviu para
Arbex discorrer sobre a sinistra ciência praticada secretamente pelo governo
israelense. O jornalista advertia para a degeneração moral dos genocidas
sionistas, capazes de criar um monstro que faria Hitler babar de inveja. E,
obviamente, esbravejava contra o silêncio da mídia mundial sobre a revelação
alarmante.
Os artigos de Bourdoukan e Arbex foram publicados no lugar
certo. Depois de oferecer uma antevisão do Armagedon racial made in Israel,
Caros Amigos revelou que os sionistas foram corresponsáveis pela criação dos
campos de concentração nazistas. Afinal, alguém duvida do que são capazes os
sionistas? Não dizia a judia russa Golda Meyer, segundo Bourdoukan, que as
crianças palestinas são bestas caminhando sobre dois pés? Os antissemitas sempre
foram assim mesmo. Se há algo degenerado que ninguém seria capaz de fazer,
então aparece algum judeu ou sionista, como Golda Meyer, e faz. Nada que venha
a causar estranheza. Afinal, os judeus-sionistas eram os maiores aliados dos
nazistas e inventaram um vírus que dizima os árabes.
Resta-nos esperar, agora, que o Ministério Público Federal,
logo depois o Poder Judiciário, revelem as razões pelas quais essa gente, que
acredita e propaga esta espécie de lixo pelos campi universitários, digam seus
motivos para obter uma relação de israelenses na UFSM. Talvez queiram nos
convencer que praticam um antissemitismo inofensivo, uma forma de discriminação
benigna e indisputável contra os vilões preferidos da humanidade ao longo da
história. Elaborar listas negras de israelenses, neste contexto, pode lhes
parecer, até mesmo, desejável. E assim se apeguem à crença de que não cometeram
crimes, porque estão a falar das fáusticas maquinações judaicas para dominar o
mundo.
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Luis Milman é jornalista e professor de filosofia.