Por Carlos I. S. Azambuja
“Dialeticamente, os comunistas dizem que mais vale
enganar-se com o partido do que ter razão fora dele ou contra ele, pois o
partido é a encarnação da verdade global, da razão histórica. Um erro do
partido só pode ser parcial ou passageiro e o próprio curso da história o
corrigiria. Uma verdade contra o partido também só pode ser parcial e
passageira, todavia, estéril e nefasta, pois ameaça obscurecer, obliterar a
verdade global da sua razão histórica” (“Um Belo Domingo”, Jorge Semprun,
editora Nova Fronteira, 1980).
Em 1934, quando o Ministério do Interior de Hitler
estabeleceu as normas de internamento administrativo nos campos de
concentração, o sistema já funcionava a 15 anos na União Soviética. Em
fevereiro de 1919, na oitava reunião do Comitê Central Executivo, Felix
Dzerjinsky declarava: “Proponho que se mantenham os campos de concentração para
utilizar o trabalho dos detentos, dos indivíduos sem ocupação regular, de todos
aqueles que não podem trabalhar sem uma certa coerção...”. Frase admirável!
Qual é o proletário que vai trabalhar na fábrica sem uma certa coerção
econômica?
Essa fórmula de Dzerjinski, além de abrir caminho para a
arbitrariedade mais total, escondia a hipocrisia dialética que preside a
ideologia do trabalho. Este, desde a vitória bolchevique, passou a ser
considerado um caso de honra para o trabalhador, como uma forma de exprimir a
sua adesão à revolução. Toda a reticência com relação ao trabalho passou a ser
julgada como delito ou como prova de má vontade, pelo menos. Meio século mais
tarde, em Cuba, a lei de Fidel Castro contra a preguiça reproduziu exatamente a
mesma articulação ideológica. O genro de Marx, Paul Lafargue, nascido em Cuba e
autor de um panfleto sobre o Direito à Preguiça, deve ter-se revirado no
túmulo.
E. Dzerjinsky, na reunião acima mencionada, prosseguia: “Se
considerarmos a administração, estas medidas” – a manutenção dos campos
–“sancionarão a falta de zelo, os atrasos, etc” – esse etc. era o pior de tudo
– “Permitirão colocar em marcha os nossos funcionários”. É por meio de um
trabalho forçado, produtivo e reeducativo que Lênin e Dzerjinsky se propuseram
corrigir maciçamente todos os parasitas, os preguiçosos, os insetos nocivos. E
os doentes também, porque embaraçavam a nascente sociedade socialista.
Em 1934, portanto, quando o Ministério do Interior de Hitler
estabeleceu que a detenção administrativa era assunto exclusivo da Gestapo,
reproduziu quase palavra por palavra uma frase pronunciada por Dzerjinsky 15
anos antes: “O direito de internamento nos campos de concentração é conferido à
Checka”.
Em 1937, quando os primeiros detentos vindos de vários
outros campos de concentração da Alemanha começaram a construção de Buchenwald,
o sistema de campos de concentração do Gulag chegava ao seu apogeu.
Nesse ínterim, o Partido Comunista Francês tentou proibir o
uso da palavraGulag e produziu um medíocre libelo: “A URSS e Nós”, pois essas
duas sílabas “produzem uma carga afetiva estranha e inquietadora e toda a visão
racional e diferenciada do mundo socialista, de sua evolução e de sua
realidade”.
A palavra Gulag é, com efeito, uma sigla. Quanto à “carga
afetiva” que essas duas sílabas podem conter, ela não cai de um céu metafísico,
ela não é uma fatalidade semântica. A “carga afetiva” vem do fato de se saber o
queGulag quer dizer. Além de compreender a “carga afetiva” que essas duas
sílabas contêm, Soljenitzyn, Varlam Chalamov e milhares de outros a sofreram.
Essas duas sílabas nos remetem a uma experiência histórica. Não é em nível de
fonética que se situa o problema. Mas o conhecimento sobre o significado dessas
duas sílabas ainda é frágil, bem longe de estar suficientemente estabelecido,
suficientemente entendido e tenderá a se esfumaçar, a se banalizar, pois as
raízes sociológicas e políticas da surdez ocidental face às realidades do Leste
continuam muito fortes.
O que teriam dito esses intelectuais do Partido Comunista
Francês no momento da projeção de O Holocausto nas telas da TV européia? “Tendo
compreendido a carga afetiva que podem conter as palavras câmara de gás e forno
crematório, os judeus organizaram a respeito uma orquestração colossal e
obsessiva?” Contudo, foi exatamente a mesma coisa. Seu passo foi idêntico na
direção da ignomínia.
Assim, os historiadores do PCF tentaram proibir o uso da
palavra Gulag. Talvez acreditassem poder suprimir a realidade dos campos, ou
pelo menos os efeitos dessa realidade, censurando a palavra que a indica.
Devemos deduzir dessa fórmula sábia que existe, sem dúvida, um mundo socialista
para os intelectuais cães-de-guarda dos partidos comunistas de todo o mundo. E
esse mundo, esse belo mundo, não é qualificado de modo depreciativo. Não é
qualificado de “real”, de “primitivo”, nem de “inacabado”. Esse mundo é
socialista, nem mais nem menos. Nós não pertencemos ao mesmo mundo.
No ano de 1937 um furacão desabou sobre as duas sílabas do
campo de concentração de Kolyma e sobre toda a sociedade soviética. Sob as
ordens do coronel Garanin, que acabou sendo fuzilado como “espião japonês”, bem
como seu patrão Iejov, que substituiu Iagoda, também fuzilado, na direção da
NKVD, sendo substituído por Béria, o qual, por sua vez, também foi fuzilado...
O coronel Garanin fez desabar sobre Kolyma um furacão de loucura. Por sua ordem
foram fuzilados milhares de deportados acusados de “agitação
anti-revolucionária”. Mas, no que consiste num Gulag a agitação
anti-revolucionária? Afirmar em voz alta que o trabalho é penoso, sussurrar o
mais inocente comentário sobre Stalin, ficar em silêncio quando a multidão de
deportados grita “Viva Stalin... fuzilado!”. O silêncio é a agitação. Grupos
inteiros foram fuzilados por não obedeceram às normas. As autoridades doGulag
deram a esse rigor uma base teórica: em todo o país executava-se o Plano
Qüinqüenal, com números precisos para cada fábrica, cada local de trabalho. Em
Kolyma definiam-se as exigências para cada monte de argila, cada carrinho, cada
picareta. O Plano Qüinquenal era a lei e não executá-lo era crime
anti-revolucionário!
O Plano era, portanto, prova tangível da superioridade
soviética, pois permitia que se evitassem as crises e a anarquia da produção
capitalista. O Plano, conceito quase místico, era, portanto, responsável não
somente na sociedade civil – mas nesse caso completamente incivil – e sim por
um despotismo exacerbado, pois ligava o trabalhador à fábrica e o presidiário
ao presídio. O Plano era, simultaneamente, a causa de um aumento refinado do
terror dentro dos campos do Gulag e tão criminoso quanto o coronel Garanin. Na
verdade, um não funcionava sem o outro.
Nesse contexto, uma brigada inteira passava os dias abrindo
túmulos, ou melhor, fossas, onde amontoavam fraternalmente os cadáveres
anônimos... Empilhavam todos os cadáveres, completamente nus, depois de lhes tirar
os dentes de ouro, registrados nas atas de inumação. Atiravam nas valas os
corpos e as pedras, mas a terra recusava os mortos, imputrescíveis, condenados
à eternidade do solo perpetuamente gelado do Grande Norte. Valas e fossas que
eram os túmulos do homem novo criado pelos bolcheviques. O Gulag é o produto
direto e inequívoco do bolchevismo.
Enquanto isso, mais tarde, em Moscou, no Mausoléu da Praça
Vermelha, multidões crédulas continuavam a desfilar ante o cadáver
imputrescível de Lênin protegido por sentinelas de um regimento de guarda,
imóveis como estátuas de bronze. Todavia, o grande mausoléu da revolução estava
no Grande Norte, em Kolyma. Lá não havia sentinelas, pois esses mortos não
precisavam de guardas.
Também não havia marchas fúnebres tocadas em surdina. Nada
havia além do silêncio. Entretanto, nas extremidades do labirinto de galerias,
num anfiteatro talhado no gelo de uma vala comum, poderiam ser organizadas
reuniões de estudiosos para discutir as conseqüências do “desvio stalinista”, com
a ajuda de um conjunto representativo de importantes personalidades marxistas
ocidentais.
Dados bibliográficos: “Um Belo Domingo”, de Jorge Semprun,
editora Nova Fronteira, 1980.
GULAG: Glavnoje Upravlenije Ispravitelno-trudovych Lagerej
(Administração Central dos Campos de Trabalho Corretivo)
Fonte: Alerta Total
_________________
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário