Editorial - O Estado de S.Paulo
A presidente Dilma Rousseff desafiou abertamente o movimento
"Não vai ter Copa", quase ao mesmo tempo que, na terça-feira, cerca
de 2,5 mil índios e sem-teto pararam Brasília para protestar contra a Copa -
foram impedidos pela PM de chegar ao Estádio Mané Garrincha, onde a taça está
exposta, porque poderiam danificá-la ou dela se apropriar como seu troféu -, e
foram dispersados a bombas de gás e de efeito moral, depois de reagir ao
bloqueio até com a arma letal do arco e flecha.
Reunida em palácio com empresários de 35 setores da
atividade, garantiu: "Não vai ter baderna". Foi a forma que encontrou
para advertir os ativistas de que serão reprimidos caso ameacem reproduzir os
distúrbios que marcaram a Copa das Confederações, em junho do ano passado.
"Aquelas cenas", afirmou, "não vão se repetir." O governo,
acrescentou, não permitirá que "encostem um dedo" nas delegações
estrangeiras. Na segunda-feira, na ida e na chegada à concentração da Granja
Comary, em Teresópolis, o ônibus da seleção foi alvo de protesto. Mas o máximo
que os manifestantes fizeram foi colar adesivos no veículo.
Como quem suspeita que possa não ter sido captada em todas
as suas implicações a mensagem de que o governo agirá preventivamente em defesa
da paz pública e da "imagem do País", Dilma falou de sua disposição
de "chamar o Exército". Mais do que isso, informou já ter oferecido a
ajuda da Força aos Estados onde se situam as 12 cidades-sede da competição. As
tropas serão despachadas assim que os governadores as requisitarem. A
presidente deixou claro que, a depender dela, deveriam ir para as ruas, não
como última, mas primeira linha de defesa, antes mesmo de qualquer manifestação.
Se é nítida a fronteira entre o exercício da livre expressão
e a sua degradação em violências contra o patrimônio público e privado, cuja
repressão é dever do Estado - como Dilma está de todo ciente -, há quem diga
que o mesmo não se aplica quando o direito democrático de falar o que se
queira, ainda que sem agressões ou depredações, interfira no direito da maioria
de se dirigir aonde queira acompanhar os jogos, sujeita apenas ao inevitável
agravamento dos problemas de circulação provocados pelo próprio evento. (Na
reunião com os empresários, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, contou
que, na Olimpíada de 2012 em Londres, ficou preso uma hora e meia em um
engarrafamento.)
A distinção, no entanto, procede também. Das tantas coisas
de que o País ainda não se deu conta sobre os imperativos da prática
democrática, está a de que a coesão de uma sociedade pressupõe, entre outros
valores, o da prevalência dos interesses legítimos do grande número, ainda que
atomizado, sobre os de grupos menores, ainda que organizados. Sobre estes é que
deveria recair a responsabilidade de subordinar as suas aparições públicas a
favor ou contra seja lá o que for ao direito dos demais - a começar pelo de ir
e vir em paz e segurança. Todo ato que o obste, mesmo em defesa de causas
presumivelmente justas para a coletividade, é uma forma de violência social. O
"Não vai ter Copa" é isso.
O pior é que o movimento que acha que o Brasil tem carências
demais para se permitir realizá-la - superestimando toscamente os seus custos
efetivos e subestimando os seus benefícios potenciais - está longe de ser o
mais nocivo para milhões de moradores das nossas metrópoles. É da lógica das
coisas que diversas categorias profissionais, quase sempre do setor público,
apostando na vulnerabilidade dos seus interlocutores, tomem carona na Copa para
fazer praça de suas reivindicações, infladas, de resto, pelo momento. O
resultado é o sequestro das cidades, dia sim, o outro também.
A tal ponto chegou o transtorno que até ontem mais de 300
pessoas haviam assinado uma petição de acadêmicos lançada dias antes na
internet pedindo "um basta" às passeatas abusivas, cobrando das
autoridades que preservem o direito de ir e vir de todos os cidadãos e
denunciando a "escalada antidemocrática das manifestações que não
respeitam os direitos elementares" das populações.
Fonte: A Verdade Sufocada
Nenhum comentário:
Postar um comentário